segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A RELAÇÃO COM O SABER DE ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RISCO SOCIAL - UM ESTUDO SOCIOPOÉTICO

A RELAÇÃO COM O SABER DE ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RISCO SOCIAL - UM ESTUDO SOCIOPOÉTICO
Autor: ADILSON MENESES DA PAZ



TRECHOS DE UMA DISSERTAÇÃO: Le rapport aux savoirs chez les adolescents en situation de risque une étude socio-poétique - Canadá, FÉVRIER 2004
Fonte: http://bibvir.uqac.ca/theses/17844859/17844859.pdf


INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 - PROBLEMATIZAÇÃO
1. QUESTÕES HISTORIC AS 11
2. MAQUINANDO O PROBLEMA 14
CAPÍTULO 2 - FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1. REFLETINDO SOBRE ADOLESCÊNCIA 30
2. A ADOLESCÊNCIA E O RISCO SOCIAL 38


INTRODUÇÃO

O interesse pelo proposto problema estar atrelado a minha experiência de educador de rua,junto ás crianças e adolescentes em situação de risco social, oriundos das periferias urbanas da cidade de Salvador/Bahia.
Durante a itinerância enquanto educador nas ruas de Salvador, junto aos meninos e meninas, pude constatar que uma parcela significativa de adolescentes em situação de risco social, após serrem matriculados nas unidades escolares públicas, evadiam ou demonstravam problemas de aprendizagem. Por me senti seriamente envolvida por essas questões, debrucei-me sobre o problema,
tentando entender - A relação com o saber de adolescentes em situação de risco social,
buscando ir além do aparente, tentando entender qual o lugar do saber escolar para os
adolescentes na pesquisa.
Após algumas tentativas frustradas com algumas instituições sociais, pude desenvolver a
pesquisa na instituição Lar Fabiano de Cristo, localizada em um bairro periférico - Alto d e
Coutos. A instituição destina-se ao atendimento de crianças e adolescentes oriundos
também de bairros circunvizinhos como Paripe, Periperi, Fazenda Coutos, e tem como
objetivo a socialização de crianças e adolescentes em situação extrema de pobreza. A.
pesquisa foi realizada com um grupo de 16 adolescentes que freqüentavam a instituição n o
turno da manhã.
As periferias urbanas de Salvador/Bahia constituem - se em um lugar físico e social onde
se acham cristalizadas os problemas de exclusão, de violência e de sofrimento sociais,
engendradas pelo processo exacerbado de uma certa racionalidade capitalista com um
modo de funcionamento paradoxal, isto é, a riqueza é gerada na medida em que se produz,
ao mesmo tempo, a pobreza, a miséria e a exclusão maciça de pessoas do mercado de
trabalho e consumo.
Pensar sobre os adolescentes dos segmentos pobres dos bairros periféricos, submetidos ao
processo de exclusão, significa abordar um universo tão multiforme que se torna
impraticável querer apreendê-lo por meio de tipologias. O adolescente marginalizado pode
ser recortado de diversas formas: usuários de substância psicoativas, trabalhador urbano,
vítima de exploração/ negligência do adulto, morador de rua, delinqüente, mendigo, etc.
Podemos afirmar que o que estes adolescentes tem em comum é a trajetória social
caracterizada pela precariedade de atendimento das políticas sociais básicas. O que nos fez
conceituá-los com adolescentes em situação de risco social.
Esta pesquisa insere-se no contexto das pesquisas qualitativas em educação, fortemente
influenciada pela abordagem astuciosa e afetiva da Sociopoética, possibilitando aos
sujeitos da pesquisa, procedimentos inclusivos e vivências prazerosas no ato de pesquisar.
Neste trabalho alinho-me a todos aqueles optam por uma prática esclarecida na busca d e
um saber democraticamente construído. Os adolescentes assumiram na pesquisa o lugar
crítico e criativo atuando com verdadeiro protagonismo no ato de pesquisar, onde puderam
opinar, descartar, e até indicar caminhos para encruzilhadas que por muitas vezes nos
trouxeram angustia no processo da pesquisa.
Os capítulos a seguir demonstram a itinerância da pesquisa e a tentativa da compreensão e
elucidação das questões que deflagraram a pesquisa.
No primeiro momento, referente à problemática, descrevemos um pouco sobre a história do
abandono da criança e do adolescente, e a experiência educativa onde se "maquinou" o
problema da pesquisa.
No segundo momento trabalhamos com Bemard Chariot e as questões sobre a relação com
o saber, a partir de Ayres (1990), Aberastury (1981) e Knobel 1(981) e outros refletimos
sobre a adolescência e com Gauthier (2001) introduzimos os princípios da Sociopoética,
questões essenciais no processo desta pesquisa.
No terceiro momento, construímos, a partir da Sociopoética, um caminho teóricometodológico
inclusivo, em que o corpo é reconhecido como instrumento de produção do
conhecimento e cada adolescente, através de uma postura cidadã na pesquisa, passa a
assumir o lugar de co-pesquisador movido por seu imaginário, seus desejos, seu
distanciamento crítico e suas implicações.
Em um quarto momento do pesquisar, descrevemos a itinerância do vivido na instituição
Lar Fabiano de Cristo, os encontros e reencontros com os adolescentes em situação de risco
social e os achados no processo do pesquisar.
Em um último momento, refletimos sobre os achados da pesquisa e sobre a importân
pensar a relação com o saber escolar.
A intenção do estudo é produzir reflexões sobre a relação com o saber escolar de sujeitos
oriundos de situação de risco social dentro de um âmbito democrático, dando aos sujeitos
da pesquisa uma participação ativa inclusiva na leitura do problema vivido por estes.
CAPÍTULO I
PROBLEMATIZAÇAO
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1. QUESTÕES HISTÓRICAS
A história do abandono está intimamente ligada ao mundo da rua, pois esta sempre foi o
lugar da desproteção, do perigo, da violência. E, durante toda a história, a rua foi a casa de
muitas crianças. Em princípios do século XVIII, na Europa, e até no Brasil, o número de
crianças abandonadas causava escândalo.
Para resolver esta situação, no Brasil, foram instituídas pelas Irmandades de Caridade, as
"rodas dos expostos". A "roda" era uma caixa cilíndrica, de madeira repartida ao meio, que
girava para dentro e para fora do recinto. A roda surgira para as pessoas colocarem
remédios, alimentos ou mensagens para os moradores dos conventos. Agora servia para
recolher crianças enjeitadas pelos pais que não podiam criar. Esta prática estendeu-se até o
período republicano, constituindo-se na principal política de atendimento social às crianças
abandonadas.
No período do Brasil Imperial, por causa da escravidão, essa situação se perpetuou e
acabou por fortalecer com a lei da Abolição da Escravatura. Desde a Lei do Ventre Livre, a
Casa dos Expostos tornara-se o reduto principal de acolhimento de crianças desvalidas.
Em 1881, o Código Penal já trazia regras de inimputabilidade, o que demonstrava uma
certa preocupação da sociedade para com as crianças desamparadas ou delinqüentes.
No século XIX, já no período republicano, a situação da criança já era entendida como
problema social, pois, após a Abolição da Escravatura e o incentivo à migração da mão-deobra
européia, as dificuldades aumentaram para a população negra, desassistida, e trazia
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sérias repercussões para a imagem do Brasil, uma vez que os jornais estampavam,
criticavam e denunciavam abertamente esta aberração.
É de se relatar que, nesta trajetória, os sindicatos e entidades sempre fizeram pressão
para que o Estado criasse políticas para a infância abandonada e pobre. Mas, só em 1920, a
situação das crianças se torna preocupação de ordem jurídica no Brasil. Assim, em 1923, a
Lei Orçamentária 4.242 autoriza serviços de assistência à infância abandonada e aos
delinqüentes. Neste mesmo ano, também é criado o Io Juízo de Menores no Brasil. E, mais
tarde, em 1927 o Código de Menores.
O Código de Menores, com um sistema dual no atendimento às crianças, atuava
especificamente sobre os chamados efeitos da ausência, que atribuía ao Estado a tutela
sobre o órfão, abandonado e a filhos de pais tidos como ausentes, o que tornava disponível
o seu direito de pátrio poder. A criança e o adolescente eram vistos como nascidos, mas não
provenientes de uma família, pois as crianças inseridas em família padrão e, socialmente,
aceitas, mereciam proteção do Código Civil Brasileiro (criado em 1916), tendo seus direitos
humanos reconhecidos. É importante ressaltar que as nomenclaturas usadas para identificar
diferentes casos ou situações dos que viviam desprovidos de direitos eram:
Expostos - para menores de 7 anos; Abandonados — para menores de 18 anos; Vadios —
para os atuais meninos de rua; Mendigos - para os que pediam esmolas ou vendiam coisas
nas ruas; Libertinos - para os que freqüentavam prostíbulos .
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E havia, também, outros termos como transviado, infrator, delinqüente, etc. Todas estas
terminologias passaram a ser enquadradas como "situação irregular" no Código de Menores
de 1979.
Mas é nas décadas de 70 e 80 do século XX, quando surgiram entidades nãogovernamentais
com propostas progressistas, que começam a aparecer alternativas
comunitárias de atendimento aos meninos e meninas em situação de risco social.
Para Costa (1989, p. 46):
[...] com o início do processo de abertura democrática surge entre educadores e
trabalhadores sociais da área um movimento de educação progressista. O menino deixa
de ser visto como feixe de carências e passa a ser percebido como sujeito de sua história
e da história do seu povo, como um feixe de possibilidades abertas para o futuro. Agora
se pergunta o que ele é, o que ele sabe, o que ele traz e do que ele é capaz.
Em 1995, um novo grupo se volta para população das ruas, é o Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua, com intenção de agregar educadores sociais de rua e organizar
as crianças que estavam nas ruas.
Estas duas instâncias foram decisivas para criação de um movimento nacional em defesa
dos direitos das crianças, resultando na conquista do artigo 227 da Constituição Federal d e
1988, culminando na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (EC A).
A criança e o adolescente são sujeitos, não mais "menores" da caracterização
estigmatizante do antigo Código de Menores, com absoluta prioridade, isto é, que devem
prevalecer em qualquer circunstância.
A proteção integral caracteriza-se como amparo completo, não só da criança e do
adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual, como também sua salvaguarda desde
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o momento da concepção, zelando pela assistência à saúde e bem-estar da gestante e da
família, natural ou substituta, da qual irá fazer parte.
Após esta síntese do que nos pareceu ser mais importante para o conhecimento era
relação ao desenvolvimento da cidadania no que se refere à criança e ao adolescente, vamos
para o maquinar do problema.
2. MAQUINANDO O PROBLEMA
O despertar pelo tema proposto começa no ano de 1995, quando assumimos a função de
educador de rua, em uma organização não-governamental o Centro Projeto Axé de Defesa
e Proteção à Criança e ao Adolescente, uma organização criada em junho de 1990 em
Salvador, que constitui a terceira maior cidade brasileira e tem uma população de cerca de
dois milhões e quinhentos mil habitantes, marcada por uma fortíssima presença negra, pela
influência da cultura afro-brasileira e pela enorme pobreza da maioria da sua população.
O Projeto Axé foi iniciado com o apoio político e legal do Movimento Nacional dos
Meninos e Meninas de Rua e com recursos financeiros da organização italiana de
cooperação com o Terceiro Mundo, a Terra Nova.
O Projeto tem uma denominação simbólica, associada aos negros (quase todos os
assistidos são negros e mestiços, pois há uma forte correlação entre pobreza e negritude em
Salvador). No candomblé, a palavra Axé significa o princípio, a força ou a energia que faz
crescer e que é transmitida a todos os seres da natureza, assegurando que todas as coisas
tenham um vir-a-ser.
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Integrados ao movimento nacional em defesa da infância e da juventude marginalizadas
e às orientações que se expressam no Estatuto da Criança e do Adolescente os participantes
do Axé explicam a presença e o aumento de meninos e meninas de rua, não a partir da
visão tradicional da "situação irregular" ou do "abandono" de suas famílias, mas como uma
decorrência das condições estruturais da sociedade brasileira. Mais precisamente, da
divisão da sociedade entre um mundo personalizado, empresarial, de alta tecnologia, do
poder e dos direitos, e um mundo dos expropriados sem pão, sem trabalho e sem direitos,
cuja identidade se perde na multidão dos pobres.
O Projeto Axé acredita que as crianças sem escola e desprovidas dos seus direitos mais
elementares, são vítimas de um processo de exclusão extremado, que lhes deixa duas
marcas básicas: perdem a característica mais fundamental da infância, a capacidade de
sonhar e desejar, e se tomam crianças sem limites ou com limites diversos daqueles
necessários para uma convivência social adequada, na medida em que foram privados do
processo de educação necessário para perceber esses limites e internalizá-los.
A partir dessa perspectiva, o Projeto Axé procura desencadear um conjunto de ações
solidárias dos incluídos para com os excluídos, como meio de construção d e uma cidadania
mais abrangente e uma base ética para a vida social.
O Projeto Axé em sua proposta político-pedagógica, articula a proposta educacional d e
Piaget, as formulações de Emilia Ferreiro e a teoria educacional de Paulo Freire.
De Piaget, reconhecido epistemólogo suíço que estudou o processo d e conhecimento
discutindo a figura do sujeito epistêmico, que é universal e se concretiza através das
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interações e trocas sociais, o Projeto Axé toma a formulação construtivista; o princípio de
que o educando é um sujeito de inteligência e de saber, dotado de uma estrutura capaz de
aprender conteúdos e construir novos conhecimentos.
De Emilia Ferreiro, educadora argentina, o projeto incorpora o processo de
alfabetização, que propõe uma mudança do eixo central da questão educacional latinoamericana
ante a fantástica evidência do fiacasso escolar. Diante dos alarmantes índices de
falência da educação, esta educadora propõe uma revolução, substituindo a pergunta de
"como se ensina" por "como se aprende", construindo a psicogênese da linguagem escrita e
rompendo as barreiras da pesquisa tradicional em educação.
A contribuição de Paulo Freire é a formulação teórica e a prática do projeto centra-se na
questão ética, entendida em seu sentido mais amplo, incluindo sua dimensão estética e
política. Na sua visão, o processo educativo deve promover a compreensão do mundo, a
integração social e, portanto, a emancipação do sujeito educando.
A essas noções e princípios, somam-se outras formulações inclusive de cunho
psicanalítico, que trata dos desejos do ser, daqueles que se relacionam com o saber, ao
conhecer, ao criar, ao se posicionar perante o mundo. Conforme a percepção do Projeto
Axé no processo de aprendizagem, entre aspectos afetivos, culturais e políticos, vinculados
às tramas sociais, educador e educando não se confundem com as figuras tradicionais d e
professor e estudante. Estão vinculados na verdade a um único e indivisível elo d e
cognoscência de afetividade, que recria o saber num espaço-tempo historicamente dado,
sendo enfim, sujeitos sociais.
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A função de educador de rua, tem como objetivo, o resgate da criança e do adolescente
em situação de risco social, já que este se encontra em situação de extrema exclusão, fora
do convívio da família, da comunidade e da escola.
A presença dos educadores na rua é a superação dos enfoques repressivos, autoritários e
assistencialistas, e a afirmação da possibilidade de transformação de que se pode não só
educar essas crianças, mas também reinseri-las na sociedade.
Os educadores de rua, em um primeiro momento, atuam junto aos espaços onde estão as
crianças e os adolescentes em situação de riscos (praças centrais, ruas, becos) iniciando os
contatos com esses meninos, o que se denomina, paquera pedagógica-é um momento d e
estranhamentos, dúvidas, elucidações, quando se está disposto a construir um diálogo com
as crianças e os adolescentes, colocando-se como adulto referência naquele espaço. Tal
postura diferencia-se dos fatores sociais com os quais esses sujeitos normalmente têm
conflitos: policiais, traficantes, agentes, juizado de menores, homossexuais etc.
A partir de diálogo educador/educando, começa um jogo de sedução que implica
olhares, gestos, brincadeiras e jogos. A intenção do educador de rua não é retirar de forma
imediata as crianças e os adolescentes da situação de rua e, sim, construir um trabalho para
que eles mesmo mobilizem para sua própria saída.
Segundo Carvalho (1992, p. 108):
O diálogo pedagógico é a mola mestra do processo de educação de rua. A partir do
que nós conhecíamos da proposta de Paulo Freire, de uma educação dialógica,
sobretudo no que se refere aos espaços de sala daquele, nós fomos para a rua para
reinventar essa educação dialógica, na relação com os meninos de rua. Nós
investimos na crença de que a palavra seria o instrumento de trabalho, de que nós
começaríamos a desenvolver um trabalho onde iríamos ensinar ou construir com os
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meninos a possibilidade de expressão, através de uma outra linguagem que não fosse
o fazer, mas uma linguagem que fosse a fala, a expressão verbal.
Uma segunda etapa pedagógica da relação educador/educando é chamada de namoro
pedagógico quando se dá um processo de fortalecimento do vínculo.
Para Carvalho (1992, p. 110),
Os meninos querem alguém que seja diferente das outras pessoas, dos outros
referenciais de adulto que já estiveram com ele até agora Há alguma coisa dentro do
ser desse menino, como dentro da estrutura da possibilidade de qualquer pessoa, que
não foi corrompida, que não foi desestruturada, e que orienta os movimentos, no
mesmo sentido de alguém que, digamos, estaria com a sua situação humana, afetiva
mais organizada. Então, ele busca, na pessoa do educador, esse outro que é diferente.
Para o Projeto Axé, o namoro pedagógico é o momento privilegiado da construção de
um projeto de vida. É o momento em que o menino está sensível a determinados valores e
demandas como aprender a 1er e escrever, criando-se, então, oportunidades de curta
duração de retirada dos meninos do território da rua para espaços outros vinculados à
comunidade que os circunda.
A terceira etapa pedagógica denomina-se Aconchego Pedagógico - delineada quando o
menino já se encontra integrado às atividades pedagógicas do Axé, formulando um novo
projeto de vida, o que implica, normalmente, a saída da rua.
Quanto ao projeto educacional mais específico, aos poucos, às atividades de rua, vão-se
mesclando outras, em ambientes semi-abertos, até chegarem aos espaços institucionais.
Nesse processo, não há tempo definido. É o tempo do menino que norteia a transferência d o
espaço aberto para os semi-fechados, até chegar às instituições. A educação de rua s e
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desdobra com a participação dos meninos e meninas nas oficinas pedagógicas, nas
atividades culturais do Projeto Erê (criança, em Iorubá) englobando a oficina de
instrumentos, a oficina de dança, música, capoeira, entre outras atividades, as oficinas de
estamparia, a oficina de moda, Modaxé, a oficina de papel reciclável. Todas essas oficinas
associam o lúdico à necessidade de ampliar a contemplação, reforçar a coordenação motora
e o equilíbrio emocional, permitindo a aquisição de formas novas de hábitos e
comportamentos.
A participação nessas atividades e a questão cultural são intensamente privilegiadas pelo
Axé enquanto dimensão integradora, considerando que as linguagens artísticas
desempenham um papel fundamental na recuperação da auto-estima e de um sentimento
comunitário nessas crianças, assim como um reordenamento pessoal capaz de fazer face à
experiência desagregadora da rua. Principalmente porque a forte influência africana que
caracteriza a formação e a cultura de Salvador, como já mencionado, marca profundamente
tanto o sistema de crenças quanto o universo lúdico dos meninos de rua.
As organizações não-governamentais têm sido objeto de estudos de vários estudiosos
que se reportam a existência e a relevância de um "terceiro setor" nas sociedades
contemporâneas, dotado de uma relativa autonomia e operando com racionalidade e formas
de atuação específicas em relação ao mercado e ao Estado. Se a esfera do mercado s e
orienta por uma racionalidade instrumental que visa ao lucro, segunda a lógica da
acumulação, e a esfera do Estado, por uma racionalidade instrumental de luta pelo poder
político, visando à hegemonia e ao controle de mecanismos de denominação, o terceiro
setor seria marcado por uma racionalidade que é, sobretudo, ética, valorativa e
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comunicativa. Com essa expressão, tem-se designado um conjunto de iniciativas nascidas
no âmbito da sociedade civil, de caráter particular mas com um sentido público, que vêm
atuando sobre questões sociais a partir de um estilo flexível e descentralizado de com um
apelo à consciência moral das pessoas, ressaltando valores como a fraternidade, a
solidariedade, a responsabilidade social, a participação e a cidadania.
Conforme já foi visto, a partir dos princípios de Piaget, Emilia Ferreiro e Paulo Freire, as
práticas adotadas pelo Projeto envolvem um conjunto complexo de procedimentos, os quais
perpassam tanto a esfera individual e personalizada quanto a dimensão coletiva, com suas
marcas e ritmos próprios. O reconhecimento dessas marcas e ritmos e o respeito aos garotos
como sujeitos da elaboração de saber crítico, promotor da sua autonomia e da sua
integração, têm-se revelado cruciais para a reconstrução de suas estruturas mental e
emocional e de suas identidades, viabilizando a busca de propostas concretas para a
superação dos problemas enfrentados por essas crianças e jovens e de sua extrema
exclusão.
Por outro lado, propondo-se a "uma reconstrução da solidariedade social" e se colocando
como "ponte entre excluídos e os integrados", o Axé também desenvolve uma ação perante
o conjunto da sociedade, objetivando a afirmação de princípios éticos e de cidadania, como
transformações na cultura, valores e atitudes em relação a infância e à adolescência
pauperizadas e marginalizadas, procurando despertar uma responsabilidade social para o
enfrentamento dos seus problemas, com ênfase naqueles contingentes que se encontram nas
ruas.
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Diante desse contexto, construímos a nossa experiência como educador, percebendo que
grande parcela de crianças e adolescentes é de negros e pertencentes à periferia pobre de
Salvador-Bahia, e que, por ausência de estrutura nas suas comunidades, emigrara para
outros lugares em busca de "espaços saudáveis" como terminais Rodo-Aquo-Ferroviário e
bairros considerados nobres, em torno das quais giram atividades de lazer.
O Projeto Axé, com o apoio do Instituto Brasileiro de Análises Sociais, contou 15.743
mil meninos e meninas em condições de extrema pobreza nas ruas de Salvador (Centro
Projeto Axé,1993,p.l7) de onde, da forma que lhes fosse mais oportuna, tiravam seu
sustento.
Para Saboia (1993), a Região Metropolitana de Salvador (RMS) chegou ao final da
década passada com a pior distribuição de rendimentos do trabalho entre todas as regiões
metropolitanas do País, sendo que os 10% mais pobres só obtinham 0,6% da renda,
enquanto que os 10% mais ricos ficavam com 53,9%. Houve, entretanto, uma pequena
redução nos percentuais de pobreza - as pessoas pobres, pelo critério de 1-2 salários
mínimos iamiliares per capita, cairiam de 36,3% para 34,0% no mesmo período.
Segundo Silva (1999), os dados da Comissão de Justiça e Paz indicam que há, na Região
Metropolitana de Salvador, uma verdadeira guerra em que se mata mais do que se matou na
guerra da Iugoslávia através de 10.484 bombardeios, e que tanto chocou o mundo. Nesta
"guerra" da RMS, tanto os que morrem quanto os que matam são jovens trabalhadores,
negros(as) que moram nos bairros pobres da periferia.
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Ressalta ainda que as relações de violência envolvem as relações sociais que começaram
a se estruturar, no Brasil, desde a sua inclusão na órbita do mercado mundial, dentro da
dinâmica do chamado Sistema Colonial, a partir de 1500, quando aqui chegaram os
portugueses. Os índios, que aqui viviam, e os africanos, trazidos e vendidos como escravos,
foram submetidos, pela explosão econômica e pela força física, às necessidades da
acumulação primitiva. Aos índios que resistissem à civilização recomendava-se o cativeiro
ou a morte. Dos cerca dos 5.000.000 que provavelmente existiam em 1500, hoje em dia
restam pouco mais de 300 mil. Os horrores da escravidão têm sido analisados por uma
vasta bibliografia. Se o Brasil começou na Bahia, a violência econômica e física também, e
ainda não se analisaram, com todo o rigor, as dimensões da violência econômica e física
contra os escravos e índios durante a economia açucareira no Nordeste. Aos escravos e
índios escravizados, para fugirem dessa situação, e se afirmarem como pessoas, já que eram
tratados como coisa, só restava a evasão ou o crime, ou seja, a fuga ou o assassinato de seu
senhor. Mesmo a camada intermediária de homens livres que se situavam entre os senhores
e os escravos, por sua dependência total dos senhores, era submetido a extrema violência
física e a exclusão social, ficando sua incorporação ao mercado de trabalho dependendo dos
períodos de expansão ou contração dos ciclos econômicos da economia brasileira, que,
como economia periférica, dependia da dinâmica do mercado exterior.
A expansão do capitalismo no Brasil pós-abolição da escravatura, vai-se dar, na Primeira
República, sob o signo do Pacto Oligárquico Coronelista. Pelo pacto, nos municípios, o s
chamados coronéis, ou seja, os proprietários de terras e de gente tinham carta branca para
agir, até na aplicação da justiça. As violentas disputas, inclusive pelas armas, entre o s
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diferentes grupos coronelísticos e oligárquicos pelo controle do poder econômico e político
marcam a Primeira República no Brasil, e a Bahia vai-se caracterizar como uma das regiões
de maior violência desses grupos coronelísticos entre si e contra os trabalhadores, inclusive
num período de reestruturação econômica da região, pela decadência da economia
açucareira. O símbolo da violência na Bahia, neste período, é a guerra de Canudos.
No período pós-30 acelera-se a expansão capitalista, que tem seus momentos decisivos
sob a égide da ditadura do Estado Novo (1937-1945) e da Ditadura Militar (1964-1988),
que aceleraram a industrialização no Brasil, graças a uma brutal expropriação e exploração
dos trabalhadores no campo e nas cidades.
No Brasil, ocorreu uma das mais rápidas e violentas expropriações no campo, pois em
1960 quase 70% da população brasileira estava no campo, e hoje é de cerca de 30 %,
invertendo-se, em quarenta anos, a dinâmica populacional no Brasil. A violência econômica
e física deste processo comandado pelo Estado, proprietários de terra, grandes e modernas
empresas, grileiros e jagunços é bastante conhecida. Também são conhecidas a brutal
repressão e a violência física que as ditaduras usaram para conseguir impor esses processos
econômicos.
O fim do regime militar significou o aprofundamento da violência econômica, pois o
processo da globalização aumentou as desigualdades entre as nações e entre as pessoas.
Resolver conflitos e matar pela fome e pela força das armas é constitutivo do regime
capitalista de produção desde sua implantação no Brasil. Para Reich (1972), que procurou
entender a expansão do nazismo e fascismo, certas estruturas humanas médias derivam d e
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determinadas organizações sociais, ou, para dizer de outro modo, cada organização social,
produz as estruturas de caráter de que necessita para existir". Assim como produz
mercadorias que atendem às necessidades materiais e espirituais dos seres humanos, a
organização social capitalista produz as violências materiais, físicas e simbólicas
necessárias à sua reprodução.
Com o crescimento da exclusão social, as crianças e os adolescentes das classes
populares fugindo da miséria e da violência física e simbólica, começam a ocupar as praças,
as sinaleiras, as ruas, abrigadas em prédios velhos a que se contrapõem sua aguçada
vitalidade e esperteza.
Para Espinheira (1998), não se deve estranhar o fato de ser a rua, os casarões antigos, os
becos da comunidade carentes o um lugar tornado necessário para a sobrevivência de todas
aqueles que não têm lugar próprio onde possa reproduzir sua sobrevivência. Em nossa
sociedade, e na maior parte das que conhecemos, há sempre arranjos familiares estruturados
em termos de consangüinidade, de parentesco. Mas há situações em que esses arranjos s e
deterioram ou simplesmente se desfazem como nos casos de morte ou desaparecimento,
fugas e abandono. Nestes casos, os mais frágeis são obrigados a recorrer a outras formas
para manter a vida e proporcionar-se a existência.
Quando analisamos a sociedade brasileira, vamos sempre encontrar a rua como lugar de
vadios e estigmatizante dos que nela se encontram, sem uma função socialmente
legitimada. Vagar pelas ruas, bater pernas nas ruas, rueiro etc. são ações e denominações
depreciativas. O "olho da rua", por exemplo, é o lugar extremo do abandono, daquele que
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está desprovido de tudo e jogado ao desamparo no tempo coletivo do não pertencer, do nãolugar.
Segundo Espinheira (1998) a identidade pessoal só é possível quando reconhecida pelo
outro; e quando esse outro reconhece apenas a identidade "do desamparado" "do coitado"
ou "perigoso", o resultado é a estigmatização, ou seja, uma leitura distorcida do outro, que
encobre aquela que deseja ser reconhecida. O menino e a menina em situação de risco
social assim nomeados, são ladrões e prostitutas; são marginais e, dessa forma, devem ser
punidos, devem desaparecer do convívio aberto.
Cabe aqui citar Michel Foucault (1979, p. 132-133):
A partir do momento em que a capitalização pôs nas mãos das classes populares uma riqueza
investida em matéria- prima, máquinas e instrumentos , foi absolutamente necessário proteger
essa riqueza [...] daí esta formidável ofensiva de moralidade que incidiu sobre a população
do século XIX. Veja formidáveis campanhas de cristianização juntos aos operários que lugar
nesta época . Foi absolutamente necessário construir o povo como sujeito moral, portanto
separando-o da delinqüência, portanto separando nitidamente o grupo de delinqüentes,
mostrando como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrandoos
carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos[...]
Crianças e adolescentes de classes populares emigram para as ruas e nelas desenvolvem
mecanismos de sobrevivência. Transgressões e mendicância são formas de obtenção de
alimentos e bens de que necessitam, seja gorjetas ou objetos roubados para a realização de
necessidades, como a compra de drogas ou para outra finalidade qualquer.
Diante dessa realidade, na prática, o educador, utilizando o diálogo pedagógico aliado a
outros procedimentos, como atividades de letramento e sempre com atitude de escuta, vai
ajudando o educando a conhecer seus potenciais e despertando a ruptura com o ciclo
perverso da rua.
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Após uma itinerância heróica junto às crianças e aos adolescentes, a partir de uma
conduta democrática e dialogai, estes são encaminhados/integrados às unidades educativas,
e logo depois às escolas públicas onde se pode observar que parte desses sujeitos se evade
ou tem uma conduta de indisciplina revelando "problemas de adaptação".
A escola acaba sendo um sistema de classificação dos indivíduos, contribuindo para
manter as desigualdades sociais. As crianças e os adolescentes em situação de risco social
vivem em uma realidade muito diferente da dos seus colegas de classe. Delas se exigem
comportamentos, atitudes e linguagem "adaptados" ao contexto escolar. Por outro lado, os
professores refletem e transmitem a vivência, os exemplos, os programas e os conteúdos
filtrados a partir dos valores e da cultura da sua classe social, sedimentando as diferenças.
Quando se penetra na prática pedagógica da escola, vamos perceber que não existe lugar
na sala de aula, especificamente, para as experiências e significados individuais, para os
ritmos diferenciados de apreensão do conteúdo escolar.
Como diz Luz (1996, p. 97),
[...] reduz o espaço e o tempo para o aluno, o objeto como: quadro de giz, carteiras
enfileiradas, cadernos, livros, caderneta de freqüência, testes, matérias, disciplinas, etc.
Além disso a forma de comportamento na sala de aula, em que o aluno prefere sentar
atrás[...] constituem-se numa defesa no sentido de não submeter-se a essa estrutura
europocêntrica de comunicação que denega e realça a sua autoridade própria.
Evidencia-se, então, uma prática educativa que nega as experiências instituintes
infantilizando estes sujeitos, sem lhes possibilitar uma aprendizagem enquanto processo d e
construção sócio cultural que se dá através de trocas entre os sujeitos e os objetos culturais.
A aprendizagem, assim, não ocorre pelo movimento de contradição entre o novo e o
27
estabelecido deixando de levar em consideração o movimento de ir e vir próprio do
processo, numa perspectiva dialética.
Segundo Freire (1998, p. 32 ),
A escola deve não só respeitar os saberes dos educandos das classes populares saberes
estes constituídos na prática comunitária, como também estabelecer uma necessária
intimidade entre os saberes curriculares fundamentais e as experiências q u e os alunos
têm como indivíduos.
Para Lopes (1993), é necessário, na proposta curricular, deixar a possibilidade de espaço
para os saberes populares legitimados, permitindo seu diálogo com os saberes científicos
em processo mútuo de questionamento.
Gauthier traz esta precisão (1996, p. 138):
A produção dos saberes como "científicos" pela academia não pode mais ignorar a
existência de contra-saberes nas classes e nos grupos marginalizados.
Segundo Ataíde (1993, p. 21), as crianças e adolescentes em situação d e risco...
São ao mesmo tempo vítimas de uma cruel e, muita vezes, dupla rejeição — da família e
da sociedade - e, submetidas a carências afetivas, culturais e materiais, terminam
levadas à delinqüência ou heróica luta que resulta em soluções originais de
sobrevivência e vida na formação de uma verdadeira cultura alternativa.
As crianças e os adolescentes em situação de risco social têm saberes próprios, saberes
dominados, ou seja, conforme escreve Foucault (1979, p. 170):
[...]uma série de saberes que tinham sido desqualificado como não competentes ou
insuficientes elaborados; saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes
abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade.
Diante dessas questões, faz-se necessário pensar/problematizar:
CAPITULO II
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
3O
1. REFLETINDO SOBRE ADOLESCÊNCIA
Segundo AYRES (1990) a produção científica sobre a adolescência, identifica que este
grupo vem se tomando preocupação da ciência enquanto dimensão específica da existência
humana há relativamente pouco tempo, tomando-se relevante na segunda metade de século
XX
No Final da década de 80 e início dos anos 90 presenciam na América Latina e Caribe, o
movimento de maior visibilidade no campo da saúde pública, no sentido de implantar e
implementar ações voltadas ao grupo de adolescentes.
Em 1988, o Ministério da Saúde (BRASIL, 1989), oficializou o programa do adolescente
e apresentou as bases programáticas do adolescente, considerando a importância
demográfica desse grupo (estimado em 23,4% da população do país, naquele ano) e sua
vulnerabilidade a determinados agravos de saúde, bem como as questões econômicas e
sociais - educação, cultura, trabalho, justiça, esporte, lazer e outras. Compreende-se que
está faixa etária caracteriza-se, principalmente, pela vulnerabilidade a questões ligadas ao
setor social. Legalmente crianças e adolescentes têm direitos assegurados, sendo dever do
Estado possibilitar o acesso a um nível de vida adequado a seu desenvolvimento físico,
mental, espiritual, moral e social.
A Organização Mundial de Saúde - OMS ( 1989,p.3) em seu relatório Debates
Técnicos sobre a Saúde dos Jovens, da 42a Assembléia Mundial de Saúde 1989, situa como
adolescente, a população compreendida entre dez e dezenove anos de idade e em sua
introdução define a adolescência como,
"... Um período de transição, no qual os jovens desenvolvem suas capacidades
experimentando novos tipo de comportamento. Ela representa uma encruzilhada na
31
vida, em que um caminho saudável para fase adulta poderá ser alcançado s e suas
necessidades de desenvolvimento e segurança forem atendidas, caso contrário um
padrão de comportamento nocivo poderá desenvolver-se com conseqüências negativas
para saúde e sobrevivência, a curto ou longo prazo".
Esta organização define, também, como características da adolescência: o crescimento e
o desenvolvimento; a busca de identidade e de independência; o desenvolvimento de um
marco de referência; a criatividade; a auto-estima; o juízo crítico; a sensibilidade; a
afetividade; a sexualidade e a educação. Assim, a adolescência como período de
exploração, de reconhecer o mundo interior e exterior, de busca de novas experiências o
que implica em um estilo de vida de risco. Os riscos são mais altos quando fatores como
contexto internacional, modos de produção, estrutura de valores socioculturais, meios de
comunicação de massa., que deveriam funcionar como positivos e protetores, terminam
atuando, muito mais, como fatores de risco.
Na perspectiva de uma abordagem que considera a adolescência como categoria
sociocultural, de origem histórica, encontramos Cavalcanti (1988,p.9-10) que expressa,
"olhando para o passado se evidencia, com surpresa, que há pouco mais de 3 0 0 anos,
ninguém fazia a menor menção ao período de vida que hoje chamamos adolescência. O
próprio conceito de infância era muito vago na antigüidade e, só no final Média, com o
aparecimento dos comerciantes como segmento de força sindical numérica e
qualitativamente importante, é que a iniSncia se caracterizou como um período de vida
diferente da idade adulta"
"... Nesse sentido, enquanto a sócio- gênese da infância está ligada à história da
burguesia, a sócio-gênese da adolescência é em termos históricos, um acontecimento
relativamente recente. Tem-se falado que a adolescência é uma invenção social que
teve lugar a partir do século XVIÏÏ. Em épocas anteriores, o indivíduo saía da infância
diretamente para idade adulta, sem nenhum período intermediário. Se a infância nasceu
com a burguesia, a adolescência foi gerada no bojo da revolução industrial. Seu
conceito é mais nítido na população urbana do que na população do campo e b em mais
caracterizado quanto maior for privilegiado da classe social a que pertence..."
Para este autor a adolescência seria destituída de caráter natural e universalizante. A
adolescência então precisaria ser pensada como um fenômeno sócio-cultural, vivenciada
32
de distintas formas, Como afirma Peres (1995.pl6) "a depender das condições
materiais/objetivas e subjetivas de existência de sujeitos sociais"
Peralva (1997) compreende que se há um caráter universal quanto à adolescência e a
juventude, dadas pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária, nas
quais completa o seu desenvolvimento físico e enfrenta mudanças psicológicas, é muito
variada a forma como cada sociedade, em um tempo histórico determinado e, no seu
interior cada grupo social vai lidar e representar esse momento. Essa diversidade se
concretiza nas condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades religiosas,
valores) e também de gênero.
Melucci (1992) na perspectiva de compreender a adolescência e a juventude entende
que, existe uma seqüência temporal no curso da vida, cuja maturação biológica fez emergir
determinadas potencialidades. Mas essa seqüência não implica necessariamente uma
evolução linear, na qual ocorra uma complexidade crescente, com a substituição das feses
primitivas pela fase mais madura, ao contrário defende a idéia de que os fenômenos
evolutivos presentes nas mudanças dos ciclos vitais são fetos que dizem respeito a cada
momento da existência, fazendo das mudanças ou transformações uma característica
estável da vida do indivíduo.
Assim a adolescência não pode ser entendida como um tempo que termina, como a fase
da crise ou de trânsito entre a infância e a vida adulta, entendida como a meta última d a
maturidade. Mas representa o momento do início da juventude, um momento cujo o núcleo
central é constituído de mudanças do corpo, dos afetos, das referências sociais e
33
relacionais. Um momento que se vive de forma mais intensa um conjunto de
transformações que vão estar presentes de alguma modo ao longo da vida.
Mesmo considerando que o elemento sócio-cultural, influi com um determinismo
específico nas manifestações da adolescência, considera-se também que, concomitante a
este aspecto, há elementos psico-biólogico, que enquanto circunstância evolutiva acontece
em qualquer contexto ou parte do mundo. As considerações sobre o quanto os fatores
intrínsecos relacionados com a personalidade, determinam as diferentes manifestações do
comportamento leva-me a recorrer aos estudos de Aberastury, Knobel ( 1981) que
observam três lutos fundamentais na adolescência: o luto pelo corpo da criança, pela
identidade, pelo papel infantil, pelos pais da infância.
O luto pelo corpo da criança se dá a partir das modificações biológicas característica da
adolescência, quando, com uma mente ainda na infância, seu corpo vai se tornando adulto,
o que pode trazer-lhes conflitos de identidade e, conseqüentemente o luto pela dependência
infantil e ao mesmo tempo, não poder assumir a independência adulta, havendo um
fracasso de personificação, nascendo em compensação o fenômeno do grupo, onde o
adolescente sente-se mais seguro. Normalmente, o adolescente vai aceitando a perda do seu
corpo infantil, surgindo o luto pela infância.
Segundo Knobel (1981) a tendência grupai é um fenômeno que adquire uma
significação transcendental, pois o adolescente transfere ao grupo, a dependência que
anteriormente era mantida na estrutura familiar especificamente com os pais. Este é
entendido como uma etapa de transição necessária no mundo externo para alcançar a
34
individualização. O grupo apresenta-se ao indivíduo adolescente como um reforço
necessário para os aspectos mutáveis do ego que se produzem neste período da vida.
O adolescente identifica-se com determinado grupo e passa a dotar as regras do mesmo
como por exemplo, em relação às modas, vestimentas, costumes, linguagem, preferências
de todo os tipos etc. Assim como também em outro nível as atuações do grupo e de seus
integrantes representam à oposição as regras estabelecidas pelas figuras parentais, que
entendem como uma maneira ativa de determinar uma atividade diferente da do meio
familiar.
Os adolescentes se mostram maduros em alguns aspectos e paradoxalmente imaturos em
outros. Isto surge por um jogo de defesa que o mesmo encontra para lidar com a invasão
súbita e incontrolável de um novo esquema corporal que lhe modifica a s u a posição frente
ao mundo externo e o obriga a procurar novas convivência. O que aprendeu na sua relação
com a família e a adaptação social como criança, não lhe serve mais. I s to faz com que
tenha que significar o novo, o que traz mudanças em sua personalidade.
Segundo Aberastury,Knobel ( 1981) Geralmente, na elaboração dessas perdas, o
adolescente recorre a um processo de negação das mesmas, vivendo, ao rnesmo tempo, a
ambivalência d e permanecer no estágio infantil — a regressão - a necessidade de continuar
seu desenvolvimento - progressão - vivendo em outros momentos a digressão - que é
quando rompe os vínculos familiares e parte na busca de si, junto a outros que vivenciam o
mesmo processo. Os pais neste processo, tem que elaborar a perda submissão infantil dos
filhos, e o confronto com suas possibilidades de envelhecimento e morte, o que segundo os
autores dificulta ainda mais o processo de passagem do adolescente para idade adulta.
36
ou impotência frente à realidade externa. Isto obriga a recorrer ao pensamento e
fantasias para compensar as perdas que ocorrem dentro de si mesmo e que não podem
evitar.
• Crises religiosas: a preocupação metafísica pode emergir com grande intensidade,
como tentativas de soluções da angustia em que vive o ego, na busca de identificações
positivas e do confronto com a morte definitiva de uma parte do seu ego corporal. Por
outro lado, situações de frustrações muito intensas, por carência de boas relações ou
imagens parentais perseguidoras podem gerar processo de ateísmo com atitude
compensadora.
• deslocalização temporal: a adolescência implica em na dificuldade em distinguir
presente, passado e futuro, sendo possível dizer que nesta fase há certa deslocalização
temporal convertendo o tempo em presente e ativo, numa tentativa de controlá-lo. Se no
passado houve uma evolução e experiências positivas, a discriminação temporal é
facilitada, e o futuro conterá a identificação projetiva de um passado gratificante. Nos
casos contrários o adolescente passa a ter condutas depressivas, pois conceituar o tempo
é essencial à integração da identidade.
• evolução sexual desde o auto-erotismo até a heterossexualidade: atividade
masturbatória e o começo do exercício genital têm, nesta fase, mais um caráter
exploratório e preparatório do que um caráter procriativa, que só tem seu início na vida
adulta. É assim considerada um fenômeno normal na adolescência, permitindo etapas
para a personalidade e integrando seus órgãos genitais a todo conceito d e si mesmo.
37
• atitude social revindicatória: a juventude tem em si mesmo sentimento de mudança que
pode ser manejado para um ideal que permite modificar estruturas sociais coletivas,
surgindo assim grandes movimentos, que podem Ter conteúdo nobre para humanidade
ou canalizar-se para aspectos perniciosos e destrutivos.
• contradições sucessivas em todas as manifestações de conduta: neste período, não é
possível o adolescente Ter uma linha de conduta estável e coerente, pois sua
personalidade ainda se apresenta permeável, recebendo e projetando com intensidade,
dando-lhe uma conduta descrita como fugaz e transitória. São estas contradições que
vão facilitar a elaboração dos lutos típicos deste período.
• constantes flutuações do humor e do estado de ânimo: estes fenômenos são entendidos
como parte dos mecanismos de projeção e luto das perdas sentidas pelo adolescente e
que acompanham seu processo de identificação. O adolescente, nestes momentos, se
refugia em si mesmo, no seu mundo interno, preparando-se para a ação reelaborando
constantemente suas vivências.
• separação dos pais : uma das tarefes básicas do adolescente, que se dá concomitante à
formação da identidade, é a separação dos pais. Esta separação poderá dar-se num
despreendimento útil quando são boas as imagens parentais, com papéis bem definidos
e uma cena primária estável.
O autor não atribui todas as características da adolescência a sua mudança psicobiológica,
como se todo processo não estivesse ocorrendo no âmbito social. É correto
afirmar que as primeiras identificações são as que fazem com as figuras parentais, assim
como também não há duvidas de que o meio em que vive determinará novas possibilidades
38
de identificação, futuras aceitações de identificações parciais e incorporação de uma grande
quantidade de pautas sócio-culturais e econômica.
2. A ADOLESCÊNCIA E O RISCO SOCIAL
A história da violência do maltrato da criança e adolescente é tocada por diversas
referências literárias e históricas. Na obra Capitães de Areia de Amado (193 7,p, 10-11)
encontramos afirmações significativas,
" Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal reformatório para ver com
são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas
sem alma, [...] o menor que acontece pros filhos da gente é apanhar duas a três vezes ao
dia"
O processo de exclusão social demonstra uma sociedade desigual, onde a cidadania não
é um conceito uniforme para o conjunto de uma sociedade; existem diferenças quanto a s
condições existenciais de sobrevivência. Essa desigualdade aparece com nitidez no texto d e
Espinheira (1993p.3), quando assinala que:
Há crianças e adolescentes que são preparados para sociedade através da escola básica,
das aulas d e língua estrangeiras, de artes que praticam esporte e frequentam clubes.
Outros, bem numerosos, desde da tema idade têm de se dedicar aos trabalhos,
comprometidos com o orçamento domésticos [...]
O Problema da criança da e do adolescente adquiriu status de problema na ótica d o
Estado e suas instituições apenas quando a ação dessas passou a alterar a ordem instituída,
com a eclosão pública de situações extremas de violência geradas pelas condições limite d e
sobrevivência a q u e boa parte da população brasileira foi constrangida.
39
A população carente quando não atendidas em pelas políticas sociais básicas ou de
primeira linha : trabalho, educação, saúde, habitação, transporte e outros, resvalam para a
condição de subcidadãos ou cidadãos de segunda classe. Sua exposição à morte, à
degradação pessoal e social faz-nos incluí-los no universo das chamadas situações de risco.
Como bem define Costa ( 1989,p.38), " pessoas, famílias, comunidades privadas de acesso
a condição mínima de bem estar e de dignidade e bloqueadas, por isso mesmo, do social."
Além das questões sociais, existem elementos psico - biológicos que influem no
processo da adolescência implicando na mudança de personalidade, busca de novos
vínculos, conflitos no meio familiar, sendo a adolescência caracterizada como período
confuso, de contradições e ambivalência.
Diante das profundas mudanças biopsicossociais, os adolescentes se vêem envolvidos
em condutas de risco, reflexo de características particulares deste grupo, como as
particularidades psicológicas de sentimento de invulnerabilidade, associado a uma fase
egocêntrica e pensamento fantasioso. Tais conduta são mais comuns na adolescência, pois
representam uma tentativa de responder às novas exigências sociais, como uma
necessidade evolutiva de desenvolvimento e autonomia. Por isto não podem ser eliminadas
totalmente, já que muitas vezes são necessárias à afirmação do adolescente na sociedade.
Lerner e Galambos (1998) associam os comportamentos de "correr risco" a
determinadas características do adolescente, de experimentação e exploração, e qualificam
duas naturezas diversas de correr risco, presentes neste período: o risco normativo, que
estaria implícito no processo de adolescer e o comportamento de risco, que pode surgir de
40
forma crescente neste período, e permanecer na idade adulta, como a ingestão de substância
psicoativas, por exemplo.
Diante de uma realidade social extremamente contraditória e atrelados a um processo
caracterizado por transformação biológicas e psicológicas os adolescentes tornam-se
vulneráveis a certas condições e circunstâncias que podem trazer consequências
indesejáveis. Para Silber (1995,p.55O) o surgimento das condutas de risco na adolescência
está relacionada à "inabilidad dei adolescent joven de conceptualizar Ias consecuencias de
su comportamiento".
Sob o conceito de adolescentes em situação de risco social, estão meninos e meninas
expostos a ambientes violentos, muitas vezes dominados pelo tráfico de drogas, vítimas de
abuso e negligência ou exploração. A história de vida destas crianças inclui experiências
de abandono, privações, exploração e vida na rua.

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