domingo, 1 de maio de 2011

Pedro Scuro Neto - Capítulo 8 - Cultura e Socialização.

SOCIOLOGIA
Primeira edição / 2004
Pedro Scuro Neto
Capítulo
Cultura e Socialização

Sumário:
Capítulo 8 - Cultura e Socialização, 165
8.1 Cultura, 166
8.2 Processos culturais, 168
8.2.1 Invenção, 168
8.2.2 Difusão,169
8.2.3 Civilização, 170
8.3 Elementos e relações culturais, 172
8.3.1 Traços, contextos e padrões culturais, 174
8.4 Socialização, 175
8.5 Ser social, 177
8.5.1 Ser e Sociologia, 180
8.6 Socialização e instituições adultas, 182
8.7 Status e papel, 186
Definições, 187
Bibliografia, 189


8 - CULTURA E SOCIALIZAÇÃO

Não faz sentido recorrer a evidências científicas, antropológicas e arqueológicas para contestar cientificamente as interpretações religiosas acerca da evolução do homem e da sociedade. Ambas , ciência e tecnologia são maneiras de encarar os atributos dos fenômenos e suas relações com a realidade e a condição humana, que correspondem a atitudes ou tipos básicos de interpretação cultural.


Enquanto a aviação militar dos Estados Unidos e da Inglaterra bombardeavam ferozmente as cidades do Afeganistão, em lugares mais remotos do país aviões de carga sobrevoavam minúsculas aldeias, cobrindo-as com pacotes de alimentos. Quando isso acontecia, centenas de aldeões corriam para recolher, com evidente entusiasmo, o presente que vinha do céu. A alimentação padrão dos afegãos consiste basicamente de pão, carne de carneiro e arroz, mas ninguém reclamava: "A comida é deliciosa", dizia um homem, de turbante, muito magro, preocupado em carregar o maior número possível de pacotes com coisas de que os americanos gostam - creme de amendoim, geleia e feijão temperado. "Esta vai ser a primeira vez depois de muito tempo que vou ficar de barriga cheia", assegurava.
Os afegãos comem com as mãos, mas os KITS vindos dos Estados Unidos traziam talheres plásticos e envelopes de sal e pimenta; em cada pacote havia instruções impressas em inglês, francês e espanhol, bem diferentes da língua de lá. Nada disso, porém, os deixava perturbados; pelo contrário: "vamos fazer uma festa", diziam, enquanto tratavam de levar os pacotes amarelos, agradecendo à boa sorte, em meio a tantas desgraças.
Por outro lado, quem poderia imaginar, décadas atrás, que os olhos das crianças brasileiras um dia brilhariam ansiosos diante de um gordurento sanduíche de carne moída ou de um copinho de coalhada industrializada? Confiando em mudanças culturais deste tipo - que fizeram, por exemplo, o iogurte, que no início era apenas um leite azedo que servia de alimento básico nas montanhas da Bulgária, transformar-se em coqueluche da garotada e de muitos adultos, no Brasil e no mundo inteiro - , a indústria alimentícia na atualidade aposta até mesmo na modificação do rústico paladar dos afegãos. Assim sendo, que importa o que eles estão acostumados a comer, se não sabem usar talheres, ou não conhecem nada de inglês, francês ou espanhol?
Esse fenômeno, que desconcerta tanta gente culta e bem informada, mas que é encarado com absoluta naturalidade pelas pessoas comuns, constitui um PROCESSO CULTURAL que os sociólogos chamam de DIFUSÃO. Esse processo, aliado a outros, determina o desenvolvimento de uma extraordinária capacidade, especificamente humana -
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comunicar-se por meio de símbolos - , processo que depende do equipamento biológico que somente o ser humano tem, assim como do papel fundamental do aprendizado na determinação do nosso comportamento. Essas capacidades, que denominamos cultura, resultam da necessidade de controlar o ambiente que nos rodeia, desenvolvendo para isso formas de tecnologia cada vez mais sofisticadas, de comunicação cada vez mais elaborada, e sistemas de crença e de legitimação cada vez mais complexos.

8.1 - CULTURA

Como o homem evoluiu ao longo dos séculos e adquiriu os traços que o tronaram capaz de desenvolver-se culturalmente continua a ser um questão controversa. A explicação científica corrente assevera que essa evolução foi e segue sendo produto exclusivo de força e de matéria, que ocorre fundamentalmente ao acaso, sem significado ou direção predeterminada. Mesmo assim, alega-se que o homem descenderia em linha direta de um primata, o Ramapitecus - mamífero com hábitos arborícolas, de traços humanóides, que teria existido 14 milhões de anos atrás - e do Australopitecus, que há nove milhões de anos já teria assumido a postura ereta, abandonando a vida nas árvores e usando provavelmente pedras como utensílios e o fogo. Depois, surgiu o Homo neanderthalensis, que viveu de 100 mil a 35 mil anos atrás, dotado de capacidade craniana até maior que a do próprio homem moderno, além de ter sido capaz de estabelecer comunicação por meio de uma linguagem primitiva, desenvolver elementos primários de religião, usar ossos de modo artesanal como utensílios etc. Finalmente, e de modo ainda mais inexplicável que a extinção dos dinossauros, o Neandertal seria substituído pelo Cro-Magnon, que desenvolveu um estilo de vida superior nas artes, na comunicação e na religião, aprendeu a domesticar animais, abandonou a vida nômade e estabeleceu-se em comunidades estáveis.
No entanto, por conta dessa maneira de encarar o processo evolutivo, não faz sentido contestar a interpretação bíblica, baseada na doutrina da criação e destino do ser humano em Cristo e pela glória de Deus, recorrendo simplesmente a evidências antropológicas e arqueológicas - empregadas cada vez mais pelos próprios teólogos para comprovar "cientificamente" o que dizem os textos sagrados, os dogmas e as tradições do cristianismo. Na verdade, ambas as maneiras de encarar os atributos dos fenômenos e suas relações com a realidade e a condição humana correspondem a duas atitudes ou tipos básicos de interpretação cultural (ver capítulo 4):
• teleológicas: centradas no propósito ou finalidade de todos os elementos e fenômenos (físicos, orgânicos ou sociais), acentuando os aspectos evolutivos e a funcionalidade dos elementos que constituem a cultura e preservam sua integridade; ou
• deontológicas: nas quais a finalidade passa a ser encarada do ponto de vista da adaptação, e se acentua o equilíbrio dos sistemas (físicos, orgânicos ou sociais) não a partir de valores supremos, noções de falso e verdadeiro, do que é certo ou errado, mas da congruência entre diferentes condutas no contexto de instituições ou modelos sociais.
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Ou seja, as duas interpretações culturais da evolução, teológica ou científica, são acima de tudo pedagógicas. Elas correspondem a uma determinada concepção de vida e de meios (processos ou técnicas) eficientes para realizar determinados ideais - como as antigas concepções sobre a cultivação da mente e do caráter (os ideais humanistas de Platão - cada um de nós deve cuidar da sua alma e zelar pelos seus próprios assuntos - ou , então, a visão aristocrática de Aristóteles - o "homem sério", que progride por seus hábitos, desenvolvendo virtudes morais e intelectuais). Ambas definições opõem cultura a civilização, e simplificam tal contradição em termos da orientação do conhecimento e tecnologia ao controle da natureza, envolvendo:
• de um lado, a realização do ser humano e a transformação de seus valores no sentido de liberdade, da autoridade genuína que ajuda a concretizar a potencialidade inerente na sociedade e nos indivíduos, da inovação que resulta das descobertas viabilizadas por uma tradição profícua e graças ao intercâmbio de diferentes sociedades e culturas;
• e, em contrapartida, opressão, estagnação, anomia, alienação, desesperança e niilismo.
Menos controversa, porém, é a importância das características que nos possibilitam, assim como foi o caso dos nossos ancestrais, a nossa afirmação como espécie, unidade biológica fundamental, e a desenvolver cultura. Nenhuma delas, contudo, isoladamente ou em conjunto, explica o crescimento da cultura, que requer, em conjunção, por exemplo, cérebro avantajado e capacidade de raciocínio, mecanismos de vocalização e linguagem. Vejamos algumas dessas características:
• postura ereta: tendência gradualmente adquirida por nossos antepassados, que favoreceu o desenvolvimento do cérebro e liberou nossas mãos das funções de locomoção, de que ainda dependem os primatas;
• estrutura cerebral adequada: diferentemente de outros animais, o ser humano ostenta um neocórtex volumoso, cujo crescimento mais acentuado ocorre durante a infância e que é determinante para a formação do intelecto, da memória, da capacidade de decisão e da própria personalidade;
• visão estereoscópica: dá sensação do relevo e da perspectiva, por meio de imagens planas, e favorece o ser humano na execução rápida e eficiente de um número infinito de tarefas;
• estrutura da mão: o polegar contraposto aos outros dedos e sensibilidade das pontas dos dedos possibilitam ao homem tanto utilizar instrumentos com força como manusear objetos delicados;
• ombros flexíveis: deixam que o homem aproveite ao máximo a postura ereta e possa movimentar os braços virtualmente em qualquer direção;
• receptividade sexual da fêmea durante o ano inteiro: determina a enorme capacidade de reprodução do ser humano, ao mesmo tempo que incentiva todo e qualquer macho a estabilizar seu relacionamento com a fêmea e a encontrar moradia permanente. Isso se dá, ademais, devido ao fato de a cria do ser humano precisar de cuidados especiais durante um longo tempo, o que, de um lado, restringe a capacidade de mobilidade da fêmea e , de outro, motiva o macho a voltar pra casa. Página 167

8.2 – PROCESSOS CULTURAIS

A experiência humana, ou o desenvolvimento da cultura, pode ser vista como um movimento incessante que já superou diversas fases, das quais, no entanto, não pode prescindir. Essa dependência do passado se explica até mesmo porque a longa trajetória do homem na terra, de aproximadamente 50 mil anos, pode ser dividida em períodos, a maioria dos quais, vivida em cavernas. Da totalidade, pouco mais de 10% pode ser documentado por meio de linguagem escrita. Somente no final apareceram o motor elétrico, a televisão, os aeroplanos, os automóveis e as armas nucleares, enfim, tudo aquilo que hoje consideramos absolutamente indispensável para a vida humana. Concluímos, portanto, que só recentemente, e ainda usando minimamente todos os recursos de que se dispõe, a humanidade começou a aproveitar sua capacidade de desenvolver cultura, sobretudo por meio de quatro processos: invenção, difusão, civilização e socialização. Essa última, por sua importância, veremos numa seção à parte.

8.2.1 – INVENÇÃO

Do mesmo modo que na evolução social os estágios superiores não cancelam os anteriores, que são absorvidos. Tornam-se momentos ou elementos do estágio atual, a invenção é algo novo produzido por meio de recombinação de elementos culturais existentes.
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O problema é que, medido pela taxa atual – ou, mais exatamente, pela ideologia que exagera o papel da inovação (novas tecnologias e novos produtos) no desenvolvimento da humanidade - , o ritmo de invenção no decorrer de milhares de anos de história da humanidade foi incrivelmente lento. Hoje em dia, por outro lado, esse movimento seria tão rápido que até poderia ter superado a capacidade de adaptação dos seres humanos e das próprias instituições. Com isso, grandes empresas estariam ficando para trás, por culpa talvez do seu tamanho gigantesco ou, então, por serem incapazes de aproveitar ideias novas e oportunidades, simplesmente porque “ ninguém quer assumir a responsabilidade de converter palavras em ação”:
Não ha escassez de criatividade ou de pessoas criativas nas empresas (...) a escassez é de inovadores. Com muita frequência as pessoas acham que a criatividade leva automaticamente à inovação. Não é assim. As pessoas que criam tendem a transferir para outros a responsabilidade pela transformação de suas ideias em fatos. Não fazem qualquer esforço para que suas ideias sejam adequadamente ouvidas e submetidas a teses.
De modo geral, porém, complicações desse tipo devem-se a um outro processo, a difusão, mais determinante para o crescimento da cultura.

8.2.2 – DIFUSÃO

Apesar de a invenção – muitas vezes concebida como sendo apenas “criatividade” (capacidade de imaginar coisas novas)e confundida com “inovação” (capacidade de fazer coisas novas) – ter maior impacto e geralmente assumir papel preponderante quando o objetivo é definir desenvolvimento cultural, em nada resulta sem difusão: a capacidade de assimilar, emprestando ou mesmo roubando, elementos de outras culturas. Desse modo, se hoje em dia preferimos camas e não redes para deitar, isso se deve à frequência e à intensidade de nossa exposição a um elemento cultural originado no Oriente Médio e modificado na Europa do Norte. Do mesmo modo, quando nos lavamos com sabonete, isso se deve a uma invenção galesa, ou se somos homens, barbeamo-nos, é devido a um rito imitado dos antigo sumérios (habitantes da baixa Mesopotâmia) ou talvez dos egípcios, que nos legaram os espelhos, para que não nos cortássemos com a lâmina de barbear, por sua vez um invento norte-americano. Até mesmo ao comer cresce nossa dívida como processo cultural da difusão: usamos pratos inventados na China, talheres feitos de aço (fabricado pela primeira vez na Índia meridional), garfos inventados por italianos e colheres derivadas de uma inovação introduzida durante o Império Romano. Para não falar das laranjas, originárias do Mediterrâneo, das melancias, que vieram da África, do leite das vacas, domesticadas pela primeira vez pelos antigos mulçumanos, ou do açúcar, de início cultivado pelos indianos, ou mesmo de imprescindível café, proveniente da Abissínia. Até para crer dependemos de difusão – fazemos orações para uma divindade hebreia em uma língua indo –europeia, que há 5 mil anos vem sendo falada pelos mais diversos povos.
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Quadro 8.1 – Da lâmina de barbear ao socialismo
O genial inventor e primeiro fabricante de aparelho de lâmina de barbear foi King C. Gillete (1855-1032). Filho de uma família arruinada por um incêndio, ainda muito jovem tornou-se caixeiro-viajante de uma empresa de ferramentas. Ao perceber o talento criador do empregado, seu patrão deu-lhe um conselho, que o moço assimilou ao extremo: empenhar-se apenas naquilo que as pessoas podem usar somente durante algum tempo e jogam fora, obrigando-as a comprar de novo.
Depois que ficou muito rico, Gillette voltou toda sua energia criadora para questões sociais, pois desprezava o regime de concorrência característico do capitalismo e acreditava que os benefícios do planejamento científico poderiam ser aplicados à sociedade – essa mesma mentalidade na época empolgava jovens intelectuais, oficiais militares, políticos e profissionais, em outros lugares do mundo, principalmente no Brasil, México, Chile e Argentina. Da sua parte, coerente com o que pensava, Gillette ofereceu uma fortuna ao ex-presidente Theodore Roosevelt para que juntos promovessem um experimento socialista, a Corporação Mundial, no então território do Arizona. Em vão.

8.2.3 – CIVILIZAÇÃO

Nossa cultura muitas vezes parece uma esponja, enorme, porosa e absorvente, que de forma indiscriminada e ao acaso suga de tudo – valores, normas, linguagem e artefatos. Com efeito, a cultura é uma coleção de comportamentos aprendidos, um extenso repositório de condutas consagradas, recriadas e passadas adiante através de gerações e contribuindo para nos diferenciar cada vez mais das outras espécies de animais. A sensação permanente é de que ,em seu todo, a cultura resiste para constituir uma base inabalável de tudo que absorve e processa. Isso ocorre, em larga margem, porque a própria estrutura social dá prioridade aos elementos que denotam estabilidade, a relações funcionais e de reciprocidade.
Por outro lado – mesmo porque eventualmente as coisas se agitam e ocorrem choques, os quais, antes mesmo de serem entendidos, assimilados e controlados, abalam as formas pelas quais a sociedade organiza-se e define a si mesma - , a trama cultural básica, que resulta de tantos planos e ações isoladas, possui também uma capacidade de gerar mudanças e modelos que igualmente ninguém quis ou idealizou. A nova ordem, irresistível e mais forte que a vontade ou a razão das pessoas e dos grupos que a compõe, é produto de uma generalizada interligação, da mútua dependência entre as condutas. Esse processo, a que chamamos de civilização, não é uma simples sequencia de mudanças caóticas e desestruturadas – na verdade, é ele que concede à cultura um acentuado caráter direcional ou progressivo, afetando até mesmo a nossa personalidade.
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Nesse processo, não apenas indivíduos ou grupos, mas as diversas subculturas que integram uma maior acabem sendo digeridas e adquirindo um caráter de cultura universal, uma cultura de massa, comum a todos os membros da sociedade. Em outras palavras, ao enfraquecimentos dos idiossincrasias, ao desaparecimento dos modos isolados de ver, sentir e reagir, contrapõe-se o fortalecimento ou aumento da importância de características culturais comuns, incluindo moderação da emoções espontâneas, adestramento do sentidos, ampliação do espaço material além da fronteira do tempo presente, hábito compulsivo de ligar eventos em cadeias sucessivas de causa e efeito... enfim, tudo que determina mudanças civilizadoras do comportamento, dependentes de:
• Mercado : que, por força da produção em massa e em série (universalização e serialização das mercadorias), a tudo padroniza e encerra (ou pelo menos restringe) o acesso a cultura apenas aos privilegiados – doravante não mais os exclusivos provadores e formadores de opinião, utilidade e gosto estético. Antes disso, “a satisfação das necessidades das maiorias era excluída da circulação macrossocial de mercadorias e realizava-se independentemente de trocas inter-regionais, entre sistemas ecológicos ou classes sociais”;
• Organização: quando a sociedade é composta em larga medida por funcionários de organizações, sejam eles superiores ou subalternos, “uma cultura apenas basta”, diferentemente dos contextos onde “ rígidas divisões entre servos e senhores requerem culturas dessemelhantes para dar conta das situações desiguais”;
• Tecnologia : dos componentes da cultura de massa o mais complexo, pois, na mesma medida que ajuda a universalizar as mercadorias, padronizar e facilitar a satisfação de necessidades, torna a maior do seres humanos impotente diante de qualquer adversidade, mesmo trivial. As pessoas não criam tecnologia, não entendem seus princípios e não sabem lidar com ela sem a assistência de outros. É uma bênção e, ao mesmo tempo, um pesadelo – “ o medo de acidentes de trânsito substituiu o medo que as pessoas tinham de cobras e lobos”. Com efeito, ainda no século XIX, Alexis de Tocqueville (1805- 1859) alertava que os efeitos degradantes da tecnologia iriam ser ainda mais nefastos que os causados pela pior das tiranias.
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Quadro 8.2 – Tocqueville, os intelectuais e a cultura de massa

Boa parte dos intelectuais reproduz a má vontade de Tocqueville em relação a tecnologia, considerando a cultura por ela produzida (especificamente, pelos meios de comunicação em massa) como algo alienado, “brega” e irracional. Enquanto isso, acham que somente por meio da “alta cultura” (muito em particular, a grande arte) seria possível elevar o indivíduo e capacita-lo a participar integralmente do gênero humano e romper a falsa consciência alienada e particularista que o impede de desenvolver uma adequada postura crítica diante do mundo em que vive”.

8.3 – ELEMENTOS E RELAÇÕES CULTURAIS

Quando pensamos em cultura de massa, quase instintivamente a associamos à “indústria cultural”, especificamente a televisão, o meio de comunicação mais popular - , e provavelmente, o mais influente – da atualidade. Os meios, contudo, são apenas instrumentos, que servem para veicular conteúdos culturais específicos, oriundos de uma estrutura social de massa. Com efeito, para uma cultura tornar-se de massa, não basta um empresário instalar uma estação de televisão, como aconteceu no Brasil ha mais de 50 anos – algo precisa ocorrer, antes, com a estrutura social ( acima indicamos três componentes estruturais dos quais a cultura de massa depende). Não percebendo isso, alguns podem concluir, de modo equivocado, que cultura é “tudo” e, sempre, uma procura de valores:
“Cultura é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando através da história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana”.
Essa postura, própria de Antropologia cultural, é definida, no Brasil, por um grupo de expressivos pensadores (Djacir Menezes e Miguel Reale, entre outros), que imaginam a cultura como a própria criação humana, correspondente ao “cabedal de bens objetivados pelo espírito humano na realização dos seus fins específicos”. Dito sem ambiguidades, o culturalismo sugere, em termos proposicionais, que:
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• A estrutura da personalidade depende intimamente da cultura, ou seja, do sistema de valores fundamentais que caracteriza uma sociedade – razão pela qual, por exemplo, a escola culturalista procura regatar as principais tradições da filosofia brasileira ( A. Paim); consequentemente, a cada sistema sociocultural corresponde uma personalidade de base: o Eu é “um precipitado cultural” (A. Kardiner);
• Cada sociedade constitui uma totalidade cultural original;
• A cultura organiza-se como um conjunto de elementos coerentes, que se completam mutuamente – a vida social é “um sistema em que todos os aspectos estão organicamente vinculados”(C. Lévi-Strauss);
• O homem vive em um universo criado por ele mesmo. Toda realidade é simbólica, percebido por meio do sistema cultural. A cultura é, portanto, a medida de todas as coisas.
Essas proposições podem ter algum valor científico, à condição porém de não serem tomadas ao pé da letra. Por exemplo, não se deve supor que indivíduos e instituições assimilam fielmente os valores fundamentais e os modelos sociais de um sistema cultural – valores e modelos são parâmetros (padrões cuja variação modifica condutas sem contudo modificar lhes a natureza) e não um software, um conjunto de programas e instruções destinado a regular rigidamente o nosso comportamento (ver Capítulo 7, seção 7.4.3). Da mesma maneira, não vale a pena deduzir que na sociedade praticamente tudo – estruturas, técnicas, instituições, normas valores, mitos e ideologias – são elementos do sistema cultural, por meio do qual os dados da natureza se converteriam automaticamente em elementos da cultura. Como acentuamos acima, antes de mais nada algo deve ocorrer na estrutura, na realidade social – uma determinada taxa de natalidade, por exemplo, mesmo resultante de uma conjunção de comportamentos dirigidos pela cultura, não é, em si, um dado cultural, não adquire significação ou nova dimensão, como querem os culturalistas.
Além da cultura existe a realidade social. O fato que, entre um período t e um período t +1, as taxas de natalidade mantiveram-se estáveis, enquanto os índices de mortalidade caíram, representa uma mudança estrutural muito mais que propriamente cultural.
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8.3.1 TRAÇOS , CONTEXTOS E PADRÕES CULTURAIS

É costuma os especialistas distinguirem artefatos, os elementos da cultura material (instrumentos, tecnologia, experiência e todo tipo de recurso, incluindo conhecimento sistematizado, tendo em vista finalidades práticas), e mentefatos, os elementos da cultura espiritual ( avanços do domínio da ciência, arte, literatura, filosofia, ética, educação etc., incluindo noções de forma, conteúdo e função). Habitual, igualmente, é dizer-se que todo comportamento pelo qual tais elementos são criados, usados e passados adiante ao longo da história é cultura. Desse jeito, mesmo os hábitos e costumes mais corriqueiros tornam-se intencionalidades objetivadas que compõem o mundo da cultura: dormir à noite, usar piercing, ver televisão depois do almoço aos domingos, implicar com os vizinhos, fazer promessa, trair o cônjuge ou tomar cerveja as sextas-feiras. Cultura, e, resumo, seria todo modo pelo qual se leva a vida em uma sociedade – tudo, enfim, que impele “todo ser humano a transcender-se, numa faina histórica renovada”.
Para definir cultura, no entanto, não basta somente classificar elementos, ou então distinguir o dado (pela natureza) – por exemplo, a carne crua – daquilo que é resultado da interferência humana – por exemplo, a carne cozida. O que importa é estabelecer os critérios de funcionalidade (consequências, utilidade) desses elementos e sua congruência com os fins a que se destinam , em termos de relações que envolvem, para começar , traços culturais, como o beijo na boca ( que não possui qualquer significado, a não ser quando considerado em relação a outros traços de mostrar afeição – russos, do sexo masculino, quando são amigos, beijam-se na boca, ao passo que brasileiros, não). Ou seja, de acordo com o número indefinido de traços inter-relacionados, formam-se complexos ou contextos culturais, que denotam, ainda no caso do beijo na boca, padrões culturais (beijo na boca que se desdobra, por exemplo, no caso de amor romântico, em escolha de um parceiro, matrimônio, família etc).
Consequentemente, a Sociologia não se restringe a dissecar culturas ou classificar elementos culturais em categorias (material e espiritual) – sua verdadeira tarefa é identificar a função e a congruência dos diferentes elementos de uma cultura, por exemplo, determinado traço cultural ou norma, para estabelecer sua validade, ou seja, o grau em que é aceito, compartilhado pelos membros ou segmentos da sociedade. Assim, podem haver traços ou contextos culturais:
• Universais: regulados por normas válidas, isto é, que se aplicam a todos os membros da sociedade, sem exceção – é o caso típico das normas do Direito, o conjunto das regras em cujo nome a sociedade reage contra desvios de conduta, prescrevendo-os e executando sanções juridicamente estabelecidas. Contudo, há comportamentos quase universalmente condenados ( por exemplo, incesto, ato sexual ou mesmo união conjugal entre parentes próximos), em que o Direito não intervém ou simplesmente omite-se – no caso específico do incesto, não são as autoridades, mas a sociedade que pode simplesmente reprová-lo ou silenciar, por ser assunto particular, ou , dependendo das circunstâncias, matar ou talvez induzir os envolvidos ao suicídio;
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• Alternativos: em que as normas permitem escolher entre diferentes modalidades se comportamentos ou estilos de vida;
• Específicos: em , que geralmente devido à divisão do trabalho na sociedade, mas também por motivo de discriminação e privilégio, as normas se aplicam somente a determinados indivíduos ou grupos, mas não a outros, devido a características que ostentam, por exemplo, adultos e crianças, homens e mulheres, empregados do setor privado e funcionários públicos.
Padrões culturais podem ser também padrões ideais, se regidos por normas absolutas, independentes de nossa vontade ou opinião, inculcadas desde criança, ou – no caso do mundo moderno – politicamente corretas, relacionadas a objetivos, liberdades ou direitos fundamentais de pensamento, expressão, movimentos, oportunidade etc. Os padrões ideais, como tal, exercem constante pressão sobre os modos desviantes de comportamento e até mesmo sobre padrões reais, isto é, aqueles que abrem caminho para mudanças sociais e antecipam futuros traços e contextos culturais.

8.4 – SOCIALIZAÇÃO

O modo de socialização característico do mundo moderno tende a enquadrar os indivíduos como se fossem integrantes de regimentos, pessoas domesticadas, disciplinadas, ensinadas, forçadas sempre que preciso, a calcular.
Para analisar cultura além de definir e avaliar traços, contextos e padrões culturais em relação à estrutura da sociedade a Sociologia considera o vasto campo dos processos de socialização, pelos quais os atores tomam conhecimento da ordem social e lidam com ela, combinando conformidade, inovação, ritualismo, evasão ou rebelião ( ver capítulo 9, tabela 9.5), Assim, hipoteticamente, indivíduos e grupos podem ser classificados como:
• Conformistas: se aceitam os objetivos e meios que a cultura prescreve e não se desajustam;
• Inovadores: ao assumir riscos e rejeitar os padrões consagrados;
• Ritualistas: quando se exoneram da obrigação de seguir os objetivos, mas continuam obedecendo às normas de cultura vigente:
• Alienados: os que não aceitam responsabilidades, porque rejeitam o sistema – que também é um problema para os rebeldes, para quem os verdadeiros obstáculos são as instituições (enquanto estes não servem de meios para a consecução de seus próprios objetivos pessoais e grupais).

A essência desses processos – socialização – é a virtude, exclusivamente humana, de usar símbolos e linguagens ao mesmo tempo para a transmissão de cultura. Nessa acepção, socialização, em sociologia, é diferente da noção utilizada, por exemplo, pelos economistas quando falam da transformação da propriedade privada...
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Em propriedade estatal, ou do senso comum, no sentido de interação social numa atmosfera agradável, de camaradagem, cooperação e simpatia. Esses significados não tem nada a ver com a concepção dada pela Antropologia cultural e a teoria da educação: constituição do ambiente no qual o indivíduo aprende um idioma, regras de pensamento conceitual, um pouco da história da comunidade da qual faz parte, princípios básicos de sobrevivência e de desenvolvimento individual , assim como regras morais para se relacionar com os outros membros da coletividade. O estudo da socialização equipara-se, assim, ao estudo do desenvolvimento da personalidade, incluindo a operação dos sistema psíquicos e fisiológicos do indivíduo, de princípios de aprendizado, de identificação, etc.
A sociologia, por sua vez, introduz nessa problemática, primeiro, o conceito de sistema social, distinto de tradição cultural (privilegiada por educadores e antropólogos), e, em seguida, a noção de personalidade como um sistema de comportamento, claramente diferenciada do organismo visto como sistema fisiológico. Isso posto, torna-se possível levantar hipóteses sobre a estrutura dos sistemas sociais e das personalidades, bem como estabelecer relações entre ambos, sem confiná-las aos limites impostos pela transmissão de valores através das gerações ou pela constituição biológica do ser humano. Ou seja, o salto qualitativo é visualizar a estrutura básica da personalidade como um sistema organizado não a partir das necessidades fisiológicas do organismos, mas da estrutura social e dos vários subsistemas da sociedade. Desse modo:
O foco da estrutura da personalidade e do seu desenvolvimento não é a “cultura”, no seu sentido mais geral, mas a detalhada estrutura de papéis sociais ( conjunto de normas que governam o comportamento de pessoas e grupos e determinam suas relações em amplos contextos) que constitui o foco da estrutura da personalidade e de seu desenvolvimento. Isso tem início virtualmente em toda e qualquer sociedade na família, encarada não como uma agência ou determinação que assegura reprodução biológica, mas como agência da socialização da criança, que segue em frente através de uma série de estágios sucessivos que estabelecem a diferenciação de uma estrutura simples e a subsequente organização e integração de partes distintas. Somente concebendo o processo de desenvolvimento da personalidade como um sistema de situações envolvendo interações sociais, podemos entender o desenvolvimento do s conjuntos de motivações através dos quais encaramos as exigências impostas pela cultura e a sociedade. Padrões instrumentais para atender necessidades fisiológicas certamente têm seu lugar neste sistema motivacional, mas isso é só o começo de algo bem mais profundo.
A Sociologia é um componente do sistema social: o conjunto de atos determinados por uma ordem normativa internalizada nas personalidades e institucionalizada, abrangendo manifestações muito determinadas da vida do indivíduo e dos grupos sociais. Consequentemente, ao longo do século XX a Sociologia desenvolveu a concepção de ser social, distinto não apenas do organismo biológico mas igualmente do “mundo histórico da cultura” ( este também “natureza”, só que “produzido pela natureza do homem”, ordenado de acordo dom as intenções deste; um mundo “construído pela inteligência humana”, no propósito de “beneficiar o próprio homem”.
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8.5 SER SOCIAL

As expressões sistemáticas originais do ser social nos foram legadas por Charles H. Cooley (1864- 1929), psicólogo social, e George Mead (1863-1931), filósofo, ambos norte-americanos, além de Sigmund Freud (1851-1939), médico austríaco nascido na Morávia ( na atualidade, parte da República Tcheca). Ao primeiro em particular devemos um conceito de processo de socialização e desenvolvimento do ser social conhecido como espelho social, por meio do qual o indivíduo imagina-se diante dos outros e avalia, a partir do que contempla, as reações das demais pessoas acerca de sua própria aparência e comportamento.
A medida que nos olhamos, rosto, corpo r roupa, e por eles nos interessamos simplesmente porque são nossos, e gostamos ou desgostamos deles dependendo de serem com gostaríamos que fossem , imaginamos que percebemos o que vai na cabeça dos outros, o que acham da nossa aparência, dos nossos modos, dos nossos propósitos e atos, assim como do nosso caráter, amigos etc. Tudo isso nos afeta das mais diversas maneiras.
Essa ideia de ser social continha basicamente três elementos: imaginação de nossa aparência para o outro, imaginação de seu conceito acerca da nossa aparência e algo dos nossos próprios sentimentos ( por exemplo, orgulho ou consternação). Supunha, também, que desde criança vivemos reagindo aquilo que acham que os outros pensam. Desse modo, observando nossos pais aprendemos a distinguir se somos particularmente atraentes ou comuns, inteligentes ou burros, fortes ou fracos, saudáveis ou doentes, e desenvolvemos uma auto imagem. Se os juízos favoráveis de algum modo superam os desfavoráveis, a criança pode ser segura, confiante e agressiva; em caso contrário, pode ser arredia, fugir de interações e/ou desenvolver várias maneiras para chamar a atenção ou obter a aprovação dos demais.
A questão é que geralmente não julgamos de modo correto as reações dos outros:
• De um lado, porque o que percebemos da opinião do Outro tende a influenciar o desenvolvimento de nossa personalidade, mais do que o Outro realmente possa estar pensando – se o professor achar que “ está agradando”, vai desenvolver mecanismos de defesa, acreditando que o que pensa é sempre verdade (“se definimos situações como sendo reais, elas serão reais também nas suas consequências” – teorema de Thomas);

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• De outro porque sistematicamente distorcemos as reações dos outros acerca de nós mesmos: sofremos com um complexo de superioridade, se percebermos as reações do outro como mais favoráveis do que na realidade são, ou de um complexo de inferioridade, se as percebemos como menos favoráveis. Casos extremos desses tipos de distorção podem ser indício de doença mental.
Essas observações contribuíram de modo decisivo para estabelecer uma relação direta, livre de mediação de qualquer natureza física ou cultural , entre sociedade e indivíduo, e entre as diferentes vertentes da mesma realidade básica – relação esta ligada a aquisição da linguagem e dos símbolos que mostram como a criança desenvolve uma consciência de si com entidade interativa. Nesse particular, sobressai o esforço da criança de assumir o papel do outro, primeiro sem saber que as interações são governadas não por indivíduos ou forças naturais( impulsos, desejos ou aversões), mas por sistemas normativos. Desse modo, ela reage apenas aos outros significativos, normalmente os pais, ao passo que, para participar em contextos mais amplos, precisa ser capaz de responder ao Outro generalizado, o ponto de vista da coletividade.
Quadro 8.3 – Ação social: fundamentos normativos

Antes de a perspectiva sociológica firmar-se definitivamente no cenário da ciência, até mesmo os maiores pensadores da humanidade acreditavam que a lógica da ação social era produto de dados psicológicos ou de forças naturais, econômicas, históricas, políticas etc. Na verdade, sem que nos apercebamos, nossa conduta inspira-se, virtualmente, a cada instante, em normas que servem de guia ou de modelo para a ação, quando queremos que esta seja aceita ou considerada pela sociedade. A coerção social corresponde ao que os sociólogos chamam de orientação normativa da ação, expressão menos negativa, digamos, que os atos coercitivos, ou sanção, tal como definido pelos juristas.
Do ponto de vista da Sociologia, na qualidade e orientação normativa da ação, a coerção social funciona como um mecanismo neutralizador de contingências. Torna a conduta previsível, além de um processo auto regulador, visto que a sociedade é uma totalidade de propriedades específicas, diversa de seus elementos e controlada e sujeita a transformações tanto pelas normas como pela coerção. Como a própria percepção dos atores, a ação adota uma forma, configuração, ordem, isto é, responde a uma estrutura, mecanismo regulador de contingências, por meio de:
• Normas: modos de fazer que garantem e dão duração as expectativas, minhas e dos outros;
• Instituições: permitem imputar a terceiros um consenso ( como no caso do sim dos noivos por ocasião do casamento, ou da assinatura de um contrato), assegurando o provável sucesso de determinadas normas em vez de outras;
• Modelos coletivos de conduta e papéis: dão sentido às relações sociais em termos de determinado conteúdo esperado.
Efetivamente, desde a dimensão mais íntima do ser até os nossos pensamentos, sensações, gestos e atitudes mais nítidas e manifestos, a ação humana obedece a regras exteriores, comuns e coletivas. Com isso , toda conduta, por referência a uma estrutura de regras ou de normas coletivas, adquire, aos olhos do sujeito e dos atores com os quais comparte o mesmo meio social, sentido e coerência, sendo por isso sempre sociável, isto é, insere-se em uma estrutura de ação fornecida por normas ou regras coletivas ou comuns, nas quais deve se inspirar.
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Quem participa de uma interação social, em um contexto amplo, assim como quem toma parte de uma partida de futebol profissional, deve ser capaz de considerar as atitudes de todos os integrantes da interação, incluindo, como no caso do jogo, mesmo quem não é apenas contendor ( o juiz, a torcida e até a opinião pública).Esse considerar as atitudes significa estar pronto a assumir o papel de qualquer dos outros (craques supremos, como Pelé ou Garrincha, destacaram-se precisamente devido a essa virtude).
As atitudes dos outros jogadores, que o participante assume, organizam-se em um tipo de unidade, organização essa que controla a resposta do indivíduo ... cada um de seus próprios atos é determinado por sua preocupação da ação dos outros que estão jogando ... se não tiver pelo menos uma ideia acerca de organização desses papéis, não poderá jogar.
Além das noções de outros significativos e outro generalizado, George Mead contribuiu para o desenvolvimento do conceito de ser social, designando uma parte, convencional, que evolui internalizando as atitudes dos outros, com respostas previsíveis as reações dos outros, e , uma outra , nunca inteiramente previsível.
• eu , a faceta da personalidade que, malgrado conotações metafísicas tão comuns, é somente pronome pessoal, que substitui o sujeito, pois tem nome ( Laura, Sandra e Pedro) e status(criança, esposa e pai);
• mim, gramaticalmente falando, forma oblíqua do eu, sempre regida de preposição, que representa, do ponto de vista Sociológico, o caráter único, singular, da personalidade do individuo, com vocação para transcender os limites impostos por seu papel ou ação social.
Por outro lado, o ser social pode ser igualmente analisado acentuando-se o conflito entre suas partes componentes. Desse modo, o médico criador da psicanálise, Freud, que encarava cultura como simplesmente o verniz que de modo tênue diferencia os homens dos outros animais, dividiu o ser social em:
• id: faceta primitiva, inconsciente, representada, de um lado, pelo princípio de prazer e desejos impulsivos de sexo e agressão, porém não inteiramente instintual. O id é organizado em torno de precipitados de objeto perdidos, relacionamentos com pessoas que intervieram nas primeiras fases do processo de socialização do indivíduo; consequentemente, não é apenas um mim não socializado, dependente de instintos ou tendências inatas;
• ego: “polimento” que se desenvolve a partir da energia do id, que se modifica graças as influências do mundo exterior e, finalmente, governa, por meio de processos de seleção e controle, os desejos e impulsos primitivos da psique (alma, espírito, mente);
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• superego: evolui praticamente de modo inconsciente, semiautomático, sem muita resistência aos valores e normas sociais, inclusive valores e normas desviantes ou variantes, incorporando-os à personalidade, representada por demandas internalizadas.



8.5.1 SER E SOCIOLOGIA

Cooley, Mead e Freud destacaram a importância das primeiras fases do processo de socialização na formação do ser social, que, acreditavam, iria constituir o núcleo da personalidade dos adultos. A percepção da opinião pública acerca da postura do médico austríaco, por exemplo, frequentemente explica quase todo tipo de comportamento humano em sociedade, principalmente no que diz respeito a vontades irrefreáveis, perversões e fetiches, como o voyeurismo (ver capítulo 10). Não obstante, Cooley, Mead e Freud, em conjunto, efetivamente demonstraram que a personalidade não pode ser entendida a não ser articulada – inclusive no que acontece a seus componentes genéticos – no seio de processos internacionais e simbólicos. No entanto, o excessivo destaque concedido a procedimentos sociopsicológicos e aos tenros anos da vida do indivíduo impediu que aqueles três pioneiros se certificassem de que socialização é um processo contínuo, que abrange toda a trajetória de vida do indivíduo e até mesmo da sociedade. Nessa visão, basicamente duas posturas sociológicas podem ser percebidas: a objetiva ou a subjetiva.
Subjetiva , postura associada ao trabalho de Max Weber (1864-1920), fundada em critérios internos (mentalidade, emoções, reações), a partir dos quais atores agem e consideram a conduta do outro:
• reconhecimento, ato ou efeito de considerar não apenas a conduta, mas também a existência e a presença do outro;
• significado da ação, com valor simbólico, anexo, compartilhado por mim e pelo Outro, constituindo um suporte para a comunicação, uma mensagem indicando expectativas recíprocas;
• percepção, consciência de que a ação é influenciada pelo entendimento do significado da minha ação e da do outro, mostrando que as expectativas foram entendidas, havendo disposição para atendê-las ou não
Objetiva, resultado da influência de Émile Durkheim (1858-1917), segundo a qual a ação social consiste em maneiras de agir, pensar e sentir, ditadas por representações ou consciências exteriores ao indivíduo, dotadas de autoridade moral e poder de correção.
• Consciência coletiva, conjunto das maneiras de agir, pensar e sentir que faz parte da herança comum e compõe o tipo psíquico de uma sociedade;
• Consciência individual, o universo privado, com traços de caráter ou temperamento, de genética e de experiências pessoais que fazem o indivíduo um ser único, singular, no contexto de uma relativa autonomia de uso e adaptação das maneiras coletivas de agir, pensar e sentir.

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Do ponto de vista sociológico, os componentes naturais ou traços culturais do ser – macho ou fêmea, feio ou bonito, jovem ou velho, inteligente ou estúpido, gordo ou magro, gentil ou grosseiro, louro ou moreno – isoladamente não tem qualquer sentido, pelo menos sem uma definição construída segundo padrões sociais. O indivíduo, assim, avalia-se a si próprio, forma um conceito de si mesmo, graças a definições que estima seu valor em termos de atributos dados pela natureza – cor da pele ou sexo, por exemplo -, que por seu turno suscitam sentimentos e atitudes de inferioridade, constrangimento e ressentimento. O ser social emerge em consequência não apenas da interação com outros significativos, mas também por meio de definições percebidas do valor outorgado em contextos mais amplos. Nesse sentido, veja-se a tentativa de incluir no processo interativo “influências diferentes e possivelmente confiantes sobre o eu”, tendo em vista a divisão da sociedade em esferas de símbolos relacionadas a instituições políticas, econômicas, militares, religiosas, de parentesco e da educação:
• Símbolos maiores, que controlam e coordenam os papéis que formam essas instituições, suprimindo a pessoa por um “vocabulário de motivos”, que ela pode usar para justificar e explicar suas ações.
• Significantes dos significantes, que ordenam todo o discurso social – por exemplo, o falo, representação do pênis, não redutível ao fato fisiológico, adorado como símbolo de fecundidade e do patriarcado, símbolo maior que determina o curso do estágio edipiano e, com ele, as relações familiares;
• Estruturas dominantes, a economia, por exemplo, seria “em última instância” a esfera determinante.



8.6 SOCIALIZAÇÃO PERMANENTE
Fomos precoces de comportamento ani-social, manifestas desde a infância, podem ser prelúdio de vários tipos de conduta problemática, incluindo delinquência e violência durante a adolescência e idade adulta. Essa ideia de continuidade do comportamento surgido nos verdes anos e perdurando desde então inspirou estudos concentrados em delinquentes – em particular infratores responsáveis por crimes graves – desde o início de suas “carreiras” até o instante em que desistem de continuar delinquindo. Estimulou, igualmente, o tratamento da questão a partir de um enfoque de saúde pública e a aplicação dos mesmos procedimentos da pesquisa que utilizam os especialistas em epidemiologia, ramo da medicina que estuda a distribuição e a frequência das doenças em populações.

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No entanto, o volume de informação sobre as condutas problemáticas, exagerado em relação ao conhecimento teórico e sistemas explicativos disponíveis, impede que se estabeleçam relações de causalidade entre o modo como as crianças são socializadas e o comportamento que manifestam no decorrer de suas vidas. Quando muito, os adeptos da continuidade conseguem verificar certa correlação, relação mútua, entre delinquencia e fatores de risco (por exemplo, traumas durante o parto, abuso e abandono, incapacidade dos pais de administrar a família e impor disciplina, fracasso escolar, conduta desordeira) que tornariam indivíduos mais vulneráveis e propensos a apresentar problemas de comportamento durante a adolescência e a idade adulta. Mas que dizer, por exemplo, das meninas (e moças) incapazes de exibir comportamento desviante do mesmo modo que os menino ( e rapazes), e que assim mesmo se tornam mães de crianças extremamente problemáticas?
Ademais, como nem toda criança exposta a fatores de risco vira delinquente, as conclusões inescapáveis são: (1) inexiste uma única causa para todo tipo de delinquência; (2) não há trajetória padrão para uma vida de crimes ou de cidadão respeitável; (3) a socialização efetuada durante a infância pode não ser tão determinante para a formação da personalidade, como até aqui pensaram os especialistas. Consequentemente, sem desmentir a tradição analítica, constata-se que para o ser social o importante não são trajetórias individuais, mas situações e fases de transição que resultam da interação com instituições do mundo adulto: primeiro, durante a infância e adolescência (família, escola, turmas); em seguida, na parte inicial da fase adulta (treinamento vocacional, curso superior, profissão, casamento), e a qualquer tempo no decorrer da existência (trabalho, relacionamentos íntimos, paternidade, mudanças bruscas de projeto de vida, investimento na coletividade etc.).

8.6.1 SOCIALIZAÇÃO E INSTITUIÇÕES ADULTAS

O hábito de enfatizar socialização a partir de fatos psicológicos, ou das raízes biológicas e culturais dos processos interativos, por muito tempo privou a Sociologia de constatar o óbvio, isto é, que entre a infância e a idade adulta, ou mesmo durante a fase adulta, ocorrem profundas mudanças de comportamento, para as quais a socialização primária praticamente não oferece alternativas. Com efeito, durante a infância a socialização tem por objetivo inculcar motivações e valores que podem ter utilidade para formatar o comportamento, ao passo que na fase adulta a ênfase está no próprio comportamento. Em segundo lugar, na fase adulta ressalta-se a necessidade de desaprender certos modos de comportamento e substituí-los por novas expectativas e padrões de desempenho. Finalmente, na fase adulta a socialização realiza-se primordialmente em um clima de neutralidade afetiva e em termos de virtual igualdade ou igualdade formal entre os atores.
Vista a partir de seus fatores adultos, a socialização é um processo que se desenrola durante todo o ciclo de vida dos indivíduos. Na família, por exemplo, desde o momento que alguém faz a corte, procura agradar, conquistar a outra pessoa, e os dois namoram eventualmente acabam se casando, tornam-se agentes de socialização, mudando os hábitos e reconfigurando os valores fundamentais, um do outro e de outros indivíduos. É nesse sentido que a família é “o berço de tudo”, ou seja, da influência recíproca, consistente e contínua dos atores que a compõem.
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Para alguns pais, fumar maconha é uma experiência inócua, que serve até para estreitar laços familiares. “é como tomar o vinho ou cerveja ao lado de quem se gosta”, compara uma empresária, de 45 anos, que de vez em quando enrola um baseado com o filho , de 19. É uma visão equivocada. Como o álcool e o tabaco, a maconha faz mal a saúde. Com um agravante: é droga ilegal. E no caso do “baseado em família”, com implicações ainda mais graves que a pena criminal. Uma das funções dos pais é inculcar nos filhos a obediência a determinados códigos. Em muitos pontos, as figuras paterna e materna encarnam as próprias regras sociais, o que é essencial não só para a educação, como para a formação da personalidade da criança e do jovem. “Quando um adulto usa droga com o filho, está sinalizando que não é preciso respeitar a lei, nenhuma lei. A partir daí, cria-se uma confusão que pode levar a distúrbios psíquicos e de comportamento”, critica uma psiquiatra. Em resumo, pai é pai, amigo é amigo. O “pai amigo”, que até fuma baseado, é uma daquelas modernices que só servem para causar transtornos, Os especialistas são unânimes: se um adulto é usuário de maconha (ou de qualquer outra droga), que a utilize longe da vista de um de seus filhos. A hipocrisia, aqui, é mesmo um elogio que o vício presta a virtude.
Existe, ainda, um contingente expressivo de pais que, embora não fumem maconha, permitem abertamente que seus filhos o façam dentro de casa – na linha “melhor aqui do que fora”. Há também aqueles que fingem não ver o que ocorre. Permanecem na sala, tentando ignorar aquele cheirinho de mato que vem do quarto. Esse universo foi abordado num estudo realizado por uma antropóloga. Durante três meses, ela conviveu com 60 jovens de 12 a 21 anos, de todos os segmentos sociais. Os jovens de classe média, principalmente, mencionaram um “certo consentimento” dos pais em relação ao uso da erva. Essa atitude não é tão perniciosa quanto consumir droga ao lado dos filhos, mas ajuda a cristalizar a ideia de que maconha não faz mal e de que é um erro incluí-la no rol dos entorpecentes. A maioria dos pesquisadores, aliás, acredita que só as substâncias mais pesadas, como cocaína, crack e ecstasy, podem ser consideradas drogas. Na verdade, assim como seus pais, eles deveriam ser informados de que nunca a erva foi tão perigosa como nos últimos 40 anos e a concentração de THC, o princípio ativo da maconha, aumentou muito (de 0,5% para 5%). Consequentemente, seu poder de viciar também. Pesquisa conduzida por uma psicóloga da Universidade Federal de São Paulo traçou o perfil dos usuários no Brasil. Eles começam a fumar por volta dos 14 anos e mais da metade enrola mais de um baseado por dia. “os jovens precisam que alguém imponha limites”, afirma a pesquisadora. Isso cabe a você pai.
Em vista disso, sem mercadejar moralidade nem perseverar em atribuir à família influência maior que a moral na formação do ser social de crianças e adolescentes, a Sociologia constata que no núcleo familiar o que existe é tão somente uma substancial convergência no que diz respeito aos valores e atitudes dos indivíduos: se um deles, não importa se o pai ou filho, é propenso a vícios, é provável que os outros na mesma família também sejam, apesar de não necessariamente pelas mesmas razões. Isso é demonstrado na tabela 8.1, principalmente no que concerne, quase sempre, às características de personalidade dos esposos, provavelmente porque o caráter de ambos era parecido antes mesmo de se casarem, ou porque os imperativos de convivência, ordem e estabilidade dentro da casa exigem um determinado estilo de socialização e não outro.
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Além da família, outras instituições ou agências de socialização modelam a personalidade dos adultos, e cada vez mais também a das crianças e adolescentes, impingindo modelos de conduta, normas que servem de guia, segundo as funções que os indivíduos preenchem. Desse modo, escolas, universidades, repartições governamentais, associações de classe, empresas e até mesmo grupos desviantes socializam seus membros e lhes atribuem papéis, definindo a posição de cada um na estrutura do grupo e da sociedade. Aos médicos e aos juízes, aos funcionários públicos, assim como aos delinquentes, são transmitidas normas de conduta e erguidas barreiras que, na base de ideias, valores e aspirações que repelem tudo que é contrário ou “não é espelho”, combinam pragmatismo (o que é útil e vantajoso) e descrença, gradualmente afastando o grupo do resto da sociedade.
Esse processo de socialização, característico do mundo moderno, tende a enquadrar indivíduos como se fossem integrantes de regimentos, pessoas domesticadas e ensinadas, forçadas sempre que preciso, a calcular, aproxima a formação do ser social (inclusive de crianças e adolescentes) ao modelo das instituições...
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...totais (quartéis, fábricas, escolas e prisões), que isolam seus membros do mundo exterior (cujos padrões geralmente rejeitam), segregando-os, mudando seus hábitos por meio de rotinas e deixando claro que a vida pode ficar muito mais difícil se tais rotinas não fossem seguidas, assimiladas e queridas. Esse processo de extrema regi mentalização dos grupos sociais – semelhante ao corporativismo profissional, ação com base exclusiva na convivência de uma categoria, em detrimento do interesse da coletividade – desdobra-se atualmente através de todo o sistema social, cujos valores e modelos (dominantes, variantes e desviantes) são internalizados pelos indivíduos à medida que estes se encaixam em posições (adquirem status) no âmbito do sistema.
Em termos analíticos – originalmente concebidos para explicar as formas de socialização dos adultos, mas que casa vez mais talvez possam ser aplicados ao comportamento de crianças e adolescentes - , os indivíduos internalizam (ou não) valores “corretos” e ajustam-se ( ou deixam de se conformar) ``as expectativas de comportamento “normal”. Podem também conformar-se sem internalizar os ditos valores, assim como deixar de fazer tanto uma coisa quanto a outra. No primeiro caso, os indivíduos são considerados socializados, no segundo caso, diletantes; no terceiro, camaleões; e, no derradeiro, não socializados.
Os tipos de socializado e diletante se parecem na medida em que internalizam os valores subjacentes, ocultos ou subentendidos a seu comportamento previsível. Sua motivação é de manter as coisas como estão, o que fazem com desenvoltura, sem constrangimento, mas porque isso dá sentido a suas vidas e preserva sua integridade moral e auto imagem. Em contraposição, camaleões e não socializados, mesmo sabendo que os valores existem e estão vigentes, não conseguem aceitá-los como legítimos, a não ser por circunstância ou conveniência. Em condições normais, o “camaleão” apoia a normalidade e vota pela continuidade, quase tanto quanto o socializado. O diletante, apesar de motivado a conformar-se, só participa forçado, preferindo a condição de mero observador. Sob qualquer condição, por estar sempre marginalizado e excluído do consenso, o não socializado pode envolver-se até em atividades subversivas.
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Quadro 8.4 – “enquanto a vida for desse jeito”

Um jovem palestino está internado em um hospital israelense, ferido gravemente após ter procurado se suicidar, detonando uma bomba amarrada em si mesmo. O rapaz, de 18 anos, chamado Zaydan, havia procurado trabalho sem sucesso, e gastava a maior parte dos dias sem fazer nada, até que foi “levado” ao suicídio, não por vingança ou qualquer coisa parecida mas pela “vontade de tornar-se um mártir”.
Depois de ter deixado de estudar, Zaydan tentou ser carpinteiro, vendeu jornais, fez biscates. Quando o conflito entre palestinos e judeus piorou a partir de setembro de 2000, as coisas ficaram ainda mais difíceis. Passava a maior parte do dia em um mercado, carregando caixas de verduras. Quando não tinha serviço, dormia ou andava pelas ruas sem destino. Até que viu na televisão um programa religioso e se convenceu de que estava perdendo tempo, que a sua vida havia chegado numa encruzilhada. Começou a frequentar uma mesquita regularmente.
No leito de hospital, Zydan insistia que ninguém o havia convencido a cometer suicídio. Tudo o que fez aprendeu sozinho, lendo manuais que conseguira aqui e ali. “sinto muito, foi um erro, mas sou um ser humano, preciso viver como os outros”, pois enquanto alguns aproveitam a vida, tendo quem os projeta, a maioria, como ele, não tem nada disso, numa situação que não dá para suportar. Apesar de querer viver em paz, ele simplesmente não vê como isso vai ser possível”.

8.7 STATUS E PAPEL

As instituições ou agências de socialização modelam a personalidade dos adultos forçando ou seduzindo os indivíduos a aceitar modelos de conduta, conjuntos de normas que servem de guia para a ocupação de determinadas posições (status) ou de acordo com a função específica a cada um no contexto social. Socializam atribuindo papéis, definindo a posição dos atores na estrutura social. A cada função correspondem condutas, maneiras de fazer, que por sua vez correspondem a expectativas, tornando o comportamento previsível. Papel é, pois, uma definição institucionalizada da posição do ator na estrutura social, essa relação dentre os meios possíveis de relacionar atores e eventos. Simplifica as expectativas, tornando-as operacionais em situações complexas. A ação. Dessa maneira, jamais é isolada do seu contexto, está sempre ligada a outras ações: por...
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... exemplo, o papel de pai é elemento tanto da situação família quanto da estrutura parentesco. Funciona, ademais, como “centro doador de sentido” às transações (Luhmann), ao comportamento esperado do ator nos termos do papel que desempenha.
Relacionada a desempenho ou função, a palavra papel é originária da dramaturgia grega, assim como pessoa provém do latim persona (máscara). A partir desses sentidos, o dramaturgo William Shakespeare (1564-1616) estabeleceu uma analogia entre a vida em sociedade e o desempenho de cada ator: “ o mundo inteiro é um palco. Nele somos , homens e mulheres, sem exceção, meramente atores. Temos as nossas próprias entradas e saídas de cena; e no decorrer da vida desempenhamos diversos papéis”. Entretanto , essa analogia, apesar de vívida e bastante adequada, não deixa de ser parcialmente retórica, pois impede a compreensão de algo mais importante, do ponto de vista sociológico – a ação desenrolada no palco é meramente ilusão, imitação da vida, não importa quão plausível, enquanto a ação social é real e consequente, até mesmo para a reputação dos atores que a representam nos palcos. Para a Sociologia, papel é, diferentemente da definição colhida dos dramaturgos, um fator crucial para a estrutura da interações sociais e para que sejam definidas as situações em que interagem atores (pessoas reais, instituições concretas e não simplesmente artistas, dramatis personae que atuam em um espetáculo que continua, mas não se modifica).
Na vida social, os indivíduos têm, efetivamente, scripts que lhes foram dados pelos grupos, instituições que fazem ou um dia fizeram parte – esses roteiros são conjuntos de definições ou normas que governam ou encaminham o comportamento de uma pessoa, grupo, instituição ou comunidade histórica, bem com o comportamento dos outros em relação a esses atores. Dito com outras palavras, papel é o padrão de comportamento previsto articulado com a posição social do ator: ou seja, papel é a contrapartida, correspondência, equivalência de posição social ou status. Mais especificamente, o papel é o aspecto dinâmico do status que fixa a posição do ator no interior de seu grupo; é a categoria que define, por exemplo, como professor ou aluno devem comportar-se em diferentes situações.

DEFINIÇÕES

CIVILIZAÇÃO: Processo que denota a expressão latina civitas, ou seja, a cidade que amplia seus limites, dilui-se politicamente e se organiza em bases jurídicas – civilis societas é o mesmo que juris societas. Cícero (104-43 a. C.) afirmava que civitas é o agregado social baseado no consenso da lei. No decorrer dos séculos, todavia, o significado de civilização tornou-se obscuro. Dante deu-lhe o sentido de justiça, de verdade “ordenada segundo um objetivo, isto é, vida feliz”. Os romanos a associavam a regime “político”, oposto a regime “militar”. No século XVIII, “civilização” virou contrário de cultura feudal e aristocrática; no século seguinte, o posto de “barbárie”. No século passado, Freud a confundiu com cultura ou “civilização humana”, isto é, “todos os aspectos pelos quais a vida humana se eleva sobre o animal e difere da vida das bestas”.
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ETNOCENTRISMO: vício de comparar os elementos de uma cultura (em geral, da própria cultura) com outros, considerando-os superiores. Uma variante intelectual do etnocentrismo é a idiofrenia, pela qual se acredita haver teorias que se aplicam somente a determinadas sociedades.
LEGITIMAÇÃO: reconhecer como autêntico, do ponto de vista jurídico, e aceitar uma relação de autoridade, tanto no ponto de vista superior quanto do subordinado. Essa aceitação tem implicações cruciais em toda a organização social, pois determina o nível de eficiência do funcionamento de um sistema: por exemplo, decisões tomadas em um nível superior supostamente deve ser levadas a cabo nos escalões inferiores, sem que seja preciso recorrer à força para estabelecer disciplina. Poder e autoridade legítimos constituem, assim, condições essenciais para a estabilidade e a hierarquia do sistema social (ver capítulo 10).
MODELOS SOCIAIS: ver capítulo 6, seção 6.2.4
NIILISMO: Vertente filosófica do ceticismo, de descrença em relação à possibilidade de chegarmos a qualquer conhecimento sólido ou definitivo, principalmente no que diz respeito as ciências sociais, à estética e à filosofia clássica. Consequentemente, o niilismo rejeita toda e qualquer definição de ordem social, e todas as formas de autoridade (Estado, religião, família etc.), argumentando que existe apenas a verdade científica e assumindo uma postura positiva radical, que negligencia o caráter essencialmente provisório do próprio conhecimento cientifico (ver capítulo 4, seção 4.1)
PSICANÁLISE: método clínico para tratamento de complexos e psicoses por meio de investigação profunda dos processos mentais do indivíduos.
RELATIVISMO CULTURAL: avaliação de diferentes padrões culturais, analisados isoladamente, em vez de levar-se em consideração a totalidade de cultura: por exemplo, ao avaliar a condição das mulheres em seu contexto e não relacionando-a com a condição das mulheres do mundo ocidental (ver capítulo 5).
TEOREMA DE THMAS: proposição do “subjetivismo total”, atribuída ao sociológico norte-americano William I. Thomas, segundo a qual para entender as situações é preciso levar em conta como os atores as percebem e definem. A contrapartida de teorema de Thomas é o “ teorema da Merton”: “e se não definimos situações reais com total, assim mesmo elas serão reais nas suas consequências?” – por exemplo, os efeitos mutagênicos e carcinogênicos das radiações e dos agentes químicos encontrados no cigarro e em outras drogas (ver capítulo 9, seção 9.1).

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